Gilfranco Alves é arquiteto e urbanista. Doutor em Arquitetura e Urbanismo. Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Pesquisador do Nomads.usp – Núcleo de Estudos sobre Habitares Interativos e co-coordenador do grupo Algo+ritmo, que pesquisa Processos Digitais de Projeto.

Anja Pratschke é arquiteta. Doutora em Ciências da Computação e tem Pós-doutorado em Cibernética de Segunda Ordem e Arquitetura. Professora e pesquisadora do Instituto de Arquitetura e Urbanismo (IAU) da Universidade de São Paulo (USP), em São Carlos. Co-coordenadora do Nomads.usp - Núcleo de Estudos sobre Habitares Interativos.


Como citar esse texto: ALVES, G.; PRATSCHKE, A. Punk rock, jogos e processos digitais de projeto: atitudes proativas e colaborativas para a arquitetura do século XXI. V!RUS, São Carlos, n. 10. [online] Disponível em: <http://143.107.236.240/virus/virus10/?sec=6&item=1&lang=pt>. Acesso em: 05 Abr. 2025.


Resumo

O presente artigo apresenta um aspecto específico da pesquisa de doutorado intitulada Cibersemiótica e Processos de Projeto: Metodologia em Revisão, defendida no final de 2014 junto ao Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo do Instituto de Arquitetura e Urbanismo (IAU) da Universidade de São Paulo (USP) e financiada pela FAPESP, que por sua vez está ligado ao grupo de pesquisa Nomads.usp da Universidade de São Paulo (USP). O artigo discute aspectos dos processos digitais de projeto dentro de uma abordagem em colaboração social com mediação digital, a partir de conceitos baseados na Teoria de Atores em Rede (Actor Network Theory), desenvolvida pelo filósofo francês Bruno Latour. O trabalho tem como objetivo examinar os procedimentos de colaboração e métodos híbridos de projeto envolvendo múltiplos atores ou jogadores, buscando redefinir as possibilidades de concepção em Arquitetura com uma abordagem cada vez mais de baixo para cima (bottom-up), e considerando os conceitos do Faça Você Mesmo (Do It Yourself) e dos jogos digitais aplicados a processos digitais de projeto.

Palavras-Chave: Cibersemiótica, Jogos Digitais, Faça Você Mesmo, Processos Digitais de Projeto, Teoria dos Atores em Rede

Primeiros acordes

O Movimento Do It Yourself (DIY), ou Faça Você Mesmo, pode ter várias origens. Aquela que gostaríamos de abordar nasceu na cena punk underground em meados dos anos 1970, tanto nos Estados Unidos, quanto na Inglaterra. No universo musical vigente nesses países, era a época do rock progressivo e da exuberância técnica, onde experimentalismos e solos virtuosos pareciam querer adiar o final das músicas ao infinito, tanto em apresentações ao vivo, quanto nas gravações registradas nos discos de vinil. Bandas de rock a essa altura clássicas configuravam um sistema hierárquico onde as mais famosas eram catapultadas a um nível mundial de fama e estrelato: os Rockstars. Nesse cenário, alguns jovens que, em princípio, não tinham habilidades musicais sofisticadas – mas tinham muita atitude e iniciativa – começaram a empunhar seus instrumentos e manifestar suas ideias, angústias e, sobretudo, seus protestos recheados de anarquismo frente ao sistema estabelecido. Assim, disseminou-se a cultura do Faça Você Mesmo, que englobava não apenas a criação, execução, gravação e distribuição das músicas, mas toda a produção, pré e pós-show, além da confecção de material de divulgação das bandas, cartazes, encartes, fanzines e, muitas vezes, as próprias capas dos discos e das fitas k-7, as famosas fitas de demonstração ou demo tapes.

Várias bandas, como Ramones (Figura 1),Television, Talking Heads e Blondie marcaram essa fase nos Estados Unidos, enquanto na Inglaterra podemos citar Sex Pistols, The Clash, The Damned e Buzzcocks, dentre outras.

Fig. 1: Ramones, Toronto, 1976. Fonte: Plismo. Licensed under CC BY-SA 3.0

Essa cultura não se perdeu ao longo do tempo e, ainda que minada por um período de certa letargia, financiada pelas grandes gravadoras, selos e rádios que dominaram o mercado fonográfico, encontramos em diversos momentos da história musical iniciativas que preservaram a atitude do Faça Você Mesmo. No Brasil, mais recentemente, o Circuito Fora do Eixo1 apresentou-se como uma alternativa bastante criativa no sentido de sustentação dos movimentos independentes e fomentação do cenário musical alternativo no país, por meio de festivais, circuitos de shows e financiamentos coletivos autossustentáveis. Estas redes de colaboração, que já demonstravam ser a base de sustentação da cena underground no punk rock, agora se estabelecem de modo muito mais amplo a partir da Internet e das conexões possíveis com as tecnologias atualmente disponíveis.

Mas o que a arquitetura tem a ver com isso?

Em princípio, as relações de produção entre o Faça Você Mesmo e arquitetura podem apresentar alguns paralelos. Um breve olhar em direção ao final do século XIX nos mostra, da criação artesanal do movimento Arts and Crafts à produção em série proposta a partir da revolução industrial, dois extremos. Esses extremos apontam para uma crise de processos que, ou eram personalizados e uns poucos tinham acesso, ou eram aplicados em grande escala atingindo um público maior, ampliando as vantagens financeiras advindas com a repetição em massa. Essa situação última praticamente se manteve ao longo de todo o século XX, acabando por originar conhecidos problemas sociais e urbanísticos que, em função do recorte aqui proposto, não serão abordados. Porém, com a recente potencialização da mediação digital e das conexões em redes, a evolução dos processos digitais de projeto e as possibilidades proporcionadas com a fabricação digital começam a alterar esse quadro, possibilitando que o Faça Você Mesmo seja revisitado, agora com tecnologia para ser ao mesmo tempo artesanal, fabricado em grande escala e colaborativo.

Fabricação digital: customização em grande escala

De um modo geral, as técnicas de fabricação digital aplicadas à arquitetura são muito recentes, se comparadas à história da própria arquitetura, com seu começo situando-se na virada do século XX para o século XXI, conforme apontado por autores, como Dunn (2012). De acordo com Orciuoli e Celani (2010), “as técnicas de fabricação digital podem ser classificadas em três categorias: aditivas, subtrativas e formativas”. Estas técnicas de fabricação permitem que os arquivos digitais sejam enviados diretamente do computador para as máquinas de produção, como, por exemplo, o robô Kuka (Figura 2). Este processo, também conhecido como file-to-factory, exige atitudes diferenciadas no ato de concepção do projeto e da manipulação das informações. Ele desloca o foco da representação, assim como era feita no desenho à mão, para a performance, no sentido de se programar desempenhos e modelar objetos e elementos arquitetônicos como estes serão efetivamente produzidos, reduzindo-se assim, o nível de abstrações e interpretações.

Fig. 2: Robô Kuka, IAAC, Barcelona. Fonte: G. Alves, 2013.

Para Kas Oosterhuis, arquiteto e coordenador do grupo de pesquisa Hyperbody, da TU Delft, na Holanda, as tecnologias de fabricação digital nos permitem avançar sobre o paradigma modernista da produção em massa:

Agora nós temos uma tecnologia diferente. Nós temos tecnologia para customizar, ou seja, para produzir séries de objetos únicos, de componentes únicos. Não há como justificar que todos os elementos em um edifício sejam o mesmo. Não há justificativa para ter uma janela que se repete. Ou ter colunas que se repetem, ou qualquer coisa – cadeiras! Não há razão! Porque a produção em massa, na verdade, está aberta para a variação de parâmetros durante o processo de produção. Nós podemos produzir séries de componentes únicos. (OOSTERHUIS apud ALVES, 2013).

Nesse sentido, a atualização do processo possibilitada pelas tecnologias permite que tenhamos elementos customizados sendo produzidos em série, o que, de certo modo, quebra o paradigma do aumento de escala da produção por repetição que vigorou ao longo do século XX.

Além disso, do ponto de vista do processo de projeto em arquitetura, há a possibilidade amplamente desenvolvida da representação tridimensional a partir de modelos físicos reduzidos ou protótipos. Os protótipos cumprem a importante função de fornecer uma representação do projeto que em muito se assemelha à própria obra arquitetônica a ser realizada no futuro, com aspectos de materialidade e desempenho que permitem a antecipação do objeto, a partir de um signo muito coerente para o cérebro humano. “Um signo ou representamen, é tudo aquilo que, sob certo aspecto ou medida, está para alguém em lugar de algo”. (PEIRCE apud NÖTH 2003 p. 65). Assim, podemos dizer que os processos digitais de projeto associados às possibilidades de prototipagem e fabricação digital permitem uma potencialização das técnicas construtivas e possibilitam a evolução do projeto arquitetônico, enquanto signo da obra a ser produzida.

Atores em rede e a colaboração entre múltiplos agentes

Conforme apontamos em Alves (2014) e Alves e Pratschke (2014), processos digitais de projeto podem adquirir qualidades interativas e, portanto, expressar, cada vez mais, demandas coletivas. Ainda que talvez nunca se atinja uma estratégia cem por cento do tipo bottom-up (de baixo para cima), em função de nossa capacidade intuitiva e também porque, em algum momento, é necessário existir um responsável pela tomada de decisão, acreditamos que à medida que os processos se tornem menos do tipo top-down (de cima para baixo) estaremos dando um grande passo em direção a processos mais interativos e mais comprometidos com valores sócio-culturais coletivos.

A Teoria de Atores em Rede (Actor-Network Theory ou ANT) surgiu em meados dos anos 1980, principalmente com os trabalhos dos filósofos Bruno Latour, Michel Callon e John Law. A ANT é um quadro conceitual proposto para explorar processos coletivos sociotécnicos, cujos estudiosos têm dedicado foco especial à ciência e atividade tecnológica. Partindo do estudo das tecnologias, a ANT sugere que o trabalho da ciência não é fundamentalmente diferente de outras atividades sociais, mas que é um processo heterogêneo no qual o social, o técnico, o conceitual e o textual atuam em conjunto e são transformados ou traduzidos. (LATOUR, 2005).

De acordo com Nobre e Pedro (2010), a Teoria de Atores em Rede, de Latour, propõe que as práticas cotidianas envolvem a ciência, a tecnologia e a sociedade e que as amarrações entre humanos e não-humanos formam um emaranhado de redes que fragmentam qualquer solidez em microconexões. Para o filósofo John Law (1992), o social não é nada mais do que um conjunto de redes de materiais heterogêneos. A circulação nas tramas da rede se dá por meio de hibridizações ou traduções e, nesses processos de deslocamentos diversos, uma realidade vai sendo produzida. Portanto, todos os artefatos tecnológicos (não-humanos), e aí podemos incluir a arquitetura, possuem uma importância social em função das traduções que possibilitam e, assim, a análise das redes deve adquirir uma perspectiva tanto social quanto técnica. 

Para Rheingantz et al. (2012), o entendimento de rede de Latour mistura os atores humanos e não humanos, dissolvendo o domínio humano sobre os fatos/artefatos:

O lugar se constitui de vida, do movimento das pessoas e acontecimentos. Cada movimento estabelece novas relações, e assim sucessivamente. A Arquitetura não pode mais ser compreendida, em sua completude, excluindo-se fatores externos ao objeto. O edifício é ele próprio a mudança, o elemento desencadeador de uma transformação urbana. O objeto arquitetônico ressalta, o tempo todo, a passagem do tempo e o movimento característico da dinâmica da vida (RHEINGANTZ et. al 2012, p. 24).

A ANT propõe, portanto, uma atuação livre, compatível com o conceito de auto-organização, na qual se torna mais fácil encontrar ordem depois de se ter permitido que os múltiplos atores ou atuadores implantassem toda uma gama de controvérsias na qual estão imersos.

O arquiteto Kas Oosterhuis vem atuando há vários anos no desenvolvimento de arquiteturas não padronizadas (non-standard architectures) com estratégias que envolvem concepções de projeto em redes de interação e responsividade. Oosterhuis afirma que, em um processo colaborativo em rede, os agentes atuam como pássaros em bando (swarm), onde cada agente é um nó em uma rede interconectada, desempenhando uma regra específica, produzindo, assim, uma rede de fluxo de informações multidirecional, ou seja, um sistema de agentes múltiplos.

Este processo dirigido à informação ou à troca de informações a partir de referências pode ser fundamentado na Teoria de Atores em Rede, de Bruno Latour, com vistas à construção de um método para processos digitais de projeto. Segundo Oosterhuis, esse modo de se definir o processo digital de projeto baseado na Teoria de Atores em Rede requer uma atitude diferente, devendo-se entender que tudo, em princípio, é dinâmico e não, estático.

Você precisa sentir esta evolução interna. Porque tudo evolui. Seu projeto evolui, situações evoluem, tudo evolui. Então você funciona evoluindo internamente. De novo, como um ponto no Swarm que pode agir somente dentro do Swarm, ele não pode ser tomado sozinho. Como você com seu cérebro, você não pode agir sozinho, porque seu cérebro é inútil se você não está conectado com outros cérebros. Talvez você nem mesmo pense. Você não veja nada. Porque tudo que evolui é baseado em conectividade, tudo é baseado em conectividade, no final. E o bi direcionamento, em questão, é somente entre dois pontos, mas claro, é multidirecional, porque há muitos jogadores, muitos tipos de componentes interativos, Swarms interativos, grupos interativos. Mas esta é a complexidade que surge quando você começa do básico, então você tem que mergulhar internamente, começar deste ponto, definir suas regras e então, trabalhar a partir daí. (OOSTERHUIS, apud ALVES 2013).

Estabelece-se, assim, um processo de projeto onde o próprio projeto pode ser representado por números e, ao mesmo tempo, ser influenciado por eles. Em um processo orientado à performance, a realidade é fornecida e não meramente observada. Para Yang (2008),

“sistemas de agentes múltiplos são sistemas compostos de vários agentes autônomos. Estes agentes podem utilizar um modelo de crença-desejo-intenção ou outros mecanismos para orientar comportamentos, responder ao ambiente, ou se comunicar e interagir com outros agentes.” (YANG, 2008 p. 10. Tradução nossa).

De acordo com Oosterhuis e Jaskiewicz (2007), projetar em arquitetura é um jogo interativo no qual o objetivo é criar um edifício. É um jogo no qual os arquitetos precisam jogar de acordo com as regras da física, da economia e da sociedade, por exemplo. Ainda segundo os autores, projetar é, por natureza, um jogo com múltiplos jogadores, no qual muitos especialistas necessitam trabalhar em conjunto para aumentar suas perspectivas de vencer.

Para os autores, mais importante do que todas as questões técnicas sobre como fazer as coisas funcionarem, é definir em que modo de projetar essas estratégias implicam:

“Computadores nos permitem jogar juntos em tempo real. Em um jogo multiplayer, a troca de informações acontece instantaneamente, muitos ciclos por segundo. O que vai acontecer se uma informação de projeto é trocada imediatamente entre designers diferentes?” (OOSTERHUIS e EJASKIEWITZ, 2007. p. 359. Tradução nossa).

Especulamos que provavelmente haverá modificações na metodologia que envolve o processo de projeto. Provavelmente também, simultaneamente às contribuições intuitivas, do tipo de cima para baixo (top-down), em cada subsistema, haverá muitos níveis de colaboração do tipo de baixo para cima (bottom-up) no sistema como um todo.

>Projetar jogando. Jogar projetando.

Para dar prosseguimento à nossa discussão, parece-nos relevante perguntar: o que temos a ganhar com o uso de jogos digitais para propostas arquitetônicas? De acordo com Hovestadt (2007), o discurso arquitetônico ainda vigente no começo do século XXI é baseado em concepções obsoletas das realidades tecnológicas. O autor aponta que muitas tentativas realizadas por arquitetos e designers de jogos, no sentido de produzir hipóteses e teorizar sobre jogos arquitetônicos, foram, muitas vezes, superficialmente exploradas e apresentadas. Assim, isso tornou-se um argumento para os arquitetos mais conservadores rotularem esta vertente como um “gênero amador”. No entanto, sabemos que, por meio dos jogos, foram desenvolvidos métodos e tecnologias eficazes para sistemas mais complexos e dinâmicos de modelagem, controle e interação. Esses sistemas podem, muitas vezes, alcançar e simular muito mais do que seria possível na prática arquitetônica cotidiana.

Considerando o âmbito da pesquisa científica, os jogos de computador surgiram, para o autor, em um momento no qual os computadores existentes eram ainda incapazes de gerar espaços virtuais. Posteriormente, os espaços constituídos por computadores eram focados principalmente na natureza física dos espaços, em busca de representar certos níveis de realidade. Mais recentemente, a partir das possibilidades promovidas pela conexão em redes e principalmente pela internet, os jogos ganharam também uma dimensão interativa, não só com o ambiente digital, mas com as possibilidades oferecidas aos múltiplos jogadores. Também foram acrescidas capacidades de interatividade cada vez mais ubíquas ou pervasivas2, a partir do desenvolvimento de tecnologia direcionada especificamente para os jogos digitais.

A evolução tanto dos consoles quanto dos jogos possibilitou uma variedade enorme e sofisticada dos níveis de representação, avançando para o 3D em ambiente digital, que passaram a simular a realidade física nesses ambientes. Isso representa também um salto na característica dos jogos, passando de um nível individual para um nível coletivo, contemplando relações não somente com a arquitetura mas também com o urbanismo. Vejamos alguns exemplos:

O SimCity (Figura 3), da Maxis, lançado em 1989, é um jogo relevante no sentido do avanço que representa na transição de um jogo de entretenimento para um jogo de planejamento, cujas estratégias compreendem ações que simulam o comportamento dos múltiplos atores e das cidades.

Fig. 3: Simcity. Fonte: BORRIES et al., 2006.

SimCity demonstra a necessidade fundamental de se observar e interagir com sistemas, habilitando os jogadores a testar teorias e construir modelos mentais. Ele foi projetado a partir de importantes referências como o Professor Jay Forrester, do MIT, autor do livro Urban Dynamics (Dinâmicas Urbanas), e como o arquiteto e matemático Christopher Alexander, especialmente em seu ensaio A City Is Not a Tree (A cidade não é uma Árvore). Nessa obra, Alexander defende que, na cidade, um padrão do tipo árvore é compartimentado em seções ou regiões individuais e que, ao invés dessa premissa, as seções se sobrepõem e se inter-relacionam umas com as outras de modo dinâmico. Assim, SimCity expressa um desejo de influenciar, a partir do planejamento, tanto a política quanto a educação, alimentando a reflexão sobre a natureza de cidades ideais. (Lobo, 2007).

Outro jogo semelhante, que surgiu a partir do SimCity e que merece citação é o The Sims (Figura 4), também da Maxis, lançado em 2000, que possibilita aos jogadores criar um bairro, com moradores simulados e, a partir daí, manipular suas vidas. Os usuários têm o objetivo de atuarem como mantenedores das famílias que criam, participando de diversas atividades cotidianas de um típico morador do subúrbio norte-americano, como por exemplo, ir às compras, comer e dormir.

Fig. 4: The Sims. Fonte: BORRIES et al.., 2006.

O espaço possível de manipulação segue em muitos sentidos a própria lógica norte-americana de uso e ocupação do espaço. O usuário deve construir sua própria casa e pode, inclusive optar, por destruir construções existentes, passando o trator literalmente nesses lotes (FLANAGAN, 2007), o que desejamos sinceramente, que não seja o objetivo do planejador ou jogador.

Atualmente, o Minecraft (Figura 5), criado por Markus Persson para a plataforma Xbox, e que atualmente vem sendo desenvolvido pela University of Southern California's School of Architectureem uma versão que promete potencializar as possibilidades de se planejar uma cidade, oferece uma maior participação colaborativa entre os usuários e é um exemplo de como os jogos podem simular situações mais dinâmicas e interativas dentro de processos digitais de projeto.

Fig. 5: Minecraft for real life. Fonte: BORRIES et al.., 2006.FIGURA 5: MINECRAFT FOR REAL LIFE. Fonte: http://www.fastcoexist.com/3034872/minecraft-for-real-life-this-video-game-wants-to-help-redesign-actual-cities#3

Sem dúvida, a condição de se encarar novos desafios e correr riscos de modo lúdico proporciona uma outra abordagem, onde os testes podem ser implementados de modo a retroalimentar o processo e os níveis de comunicação entre os participantes podem ser aprofundados. Disso resulta uma interação com o ambiente e, por consequência, com as cidades, que altera a experiência dos cidadãos, não apenas como usuários do espaço, mas como co-designers das experiências que podem ser proporcionadas. Em entrevista aos editores de “Space Time Play”, William Mitchell fala sobre a questão:

Essas tecnologias criam uma nova relação entre a cidade e seus usuários. Elas criam uma nova narrativa da cidade. E eu tendo a pensar que estas narrativas que se desdobram quando você se move pela cidade e as narrativas que são mapeadas para a cidade são muito importantes para o desenho urbano. Narrativas fazem a cidade. [...] Então eu acho que a relação entre as novas tecnologias de jogos e o espaço é muito importante. No futuro, jogos com localização referenciada e pervasivos irão criar um novo tipo de estrutura narrativa no espaço urbano, e dispositivos com localização referenciada irão mapear a narrativa sobre o espaço da cidade de maneiras muito interessantes. (MITCHELL, 2007. p. 408. Tradução nossa).

Podemos presumir que, quando Mitchell fala de novas relações entre a cidade e seus usuários, poderia estar falando também de uma potencialização dos níveis de participação dos cidadãos na tomada de decisões em relação a como os espaços poderiam ou deveriam ser projetados e gerenciados pela coletividade. Em um ambiente híbrido, o mundo virtual permeia o mundo físico e o mundo físico permeia o mundo virtual gerando zonas híbridas de ambiguidade. Elas podem se mostrar muito interessantes em termos de conflitos e demandas que podem emergir, a partir de abordagens bottom-up, caso, obviamente, esse seja o interesse de quem planeja os espaços.

Em geral, os jogos operam dentro de um mesmo princípio: eles são manifestações técnicas que descrevem meios de se pensar, refletem escolhas e, via de regra, são mais poderosos e adaptáveis que as técnicas de construção disponíveis, uma vez que estas, após atingirem um certo limite de qualidade, muitas vezes permanecem no mesmo status sem atualização ou evolução de performance. (HOVESTADT, 2007). Essa situação poderia levar a certa acomodação em relação aos usuários, justamente por não propor desafios. Já em uma situação simulada, os limites podem ser expandidos pela condição interativa dos modelos híbridos.

Nosso interesse está no estudo e no desenvolvimento de sistemas que possibilitem benefício mútuo através do qual possibilidades arquitetônicas possam estar ligadas à modelagem de jogos, produção colaborativa e padrões de interação entre usuários. Essas interfaces poderiam estar voltadas para o uso diário dos escritórios de arquitetura, porém sabemos que aprofundar os níveis de interação demanda uma quantidade significativa de trabalho, treinamento e paciência para que o processo possa ser compreendido e como consequência, evoluir. Novamente, trata-se de uma questão de mudança de mentalidade e de postura.

Finalizando a jam session

Em primeiro lugar, cabe destacar que o Do It Yourself ou Faça Você Mesmo tem a ver com atitude. Tem a ver com mudança de um estado de espírito, partindo da acomodação para a ação. Na sequência, concluímos de modo análogo que, assim como no punk rock, processos digitais de projeto possibilitam uma ampliação no escopo de atividades dos arquitetos e designers, nas quais podem eles mesmos atuar diretamente. Essas atividades vão da configuração do próprio design (metadesign) baseado na programação de scripts que agregam parâmetros na concepção inicial do projeto, até a prototipagem e a fabricação digital, inclusive em escala 1:1, promovendo assim uma mudança de abordagem em relação aos métodos de projeto e de produção da arquitetura. Parece-nos evidente que torna-se fundamental uma atitude diferenciada em relação ao processo.

Também acreditamos que as teorias relacionadas possuem aspectos complementares entre si e que podem constituir-se em uma fundamentação importante para processos digitais de projeto. A noção de atores ou atuadores proposta por Latour é a base para a concepção de sistemas de agentes múltiplos, que, por sua vez, também se utilizam de estratégias inspiradas a partir do comportamento de enxame ou swarm.

Além disso, esperamos que os jogos digitais aplicados em processos de projeto possam explorar aspectos relacionados à mudança de atitude e propor ambientes que simulem vários comportamentos, estimulando estratégias colaborativas onde os atuadores podem influenciar e serem influenciados por todos os participantes do jogo. Estas possibilidades podem conferir ao processo de projeto características mais interativas e também tornar mais claros os objetivos a serem atingidos.

Por fim, uma questão nos parece irreversível: o futuro da arquitetura será colaborativo, focado em capacitar as pessoas para configurar e melhorar os espaços em que vivem, elas mesmas. Consequentemente, esse futuro exige repensar o papel dos arquitetos e urbanistas, e, portanto, da própria arquitetura.

Referências

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2 Computação ubíqua (em inglêsUbiquitous Computing ou ubicomp) ou computação pervasiva é um termo usado para descrever a onipresença da informática no cotidiano das pessoas. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Computa%C3%A7%C3%A3o_ub%C3%ADqua. Acesso em 04/07/2014.

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