Bruno Massara Rocha é arquiteto e urbanista, Mestre em Arquitetura e Urbanismo e Professor assistente do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Estuda processos de projeto, interfaces gráficas digitais e análise urbana.
Como citar esse texto: ROCHA, B. M. Do it yourself e improviso: por uma outra epistemologia da projetação: uma análise do processo de improvisação a partir do método de reflexão-em-ação.V!RUS, São Carlos, n. 10, 2014. Disponível em: <http://143.107.236.240/virus/virus10/?sec=4&item=2&lang=pt>. Acesso em: 05 Abr. 2025.
Resumo
Esse artigo aborda aspráticas Do it Yourself a partir do que é considerado sua principal estratégia de ação: a improvisação. Mostraremos que a improvisação, enquanto estratégia criativa, transcende significativamente o entendimento e o valor a ela atribuído pelo senso comum e pela cultura projetual. Os atributos da improvisação serão apresentados inicialmente a partir de uma análise realizada no âmbito artístico. Em seguida, serão confrontados com metodologias de projeto centrado-na-ação, notadamente a reflexão-em-ação, elaborada por Donald Schön. Baseada no que se denomina raciocínio improvisacional, será realizada uma análise mais detalhada da natureza dos procedimentos compreendidos pela cultura Do it Yourself e pelos movimentos que a compõem, como a cultura maker e o Open Design. O artigo busca revelar ao leitor que a improvisação é um procedimento criativo notável, passível de ser sistematizado e incorporado às estratégias projetuais contemporâneas, e portador de um potencial de revisão epistemológica da cultura projetual.
Palavras-chave: improvisação, reflexão-em-ação, epistemologia, metodologia, do it yourself.
Introdução
Uma das expressões mais recorrentes atribuídas às práticas Do It Yourself é a improvisação. A concepção do que realmente é um processo de improvisação e a sua relação com o Do it Yourself é o tema central deste artigo. Pretende-se aqui apresentar uma análise do processo de improvisação sob um recorte metodológico e demonstrar que muitas visões formatadas e pouco aprofundadas do que realmente seja improvisar obscurecem qualidades deste ato que hoje parece recuperar, através do conceito Do It Yourself, um valor importante enquanto meio de produção democrática de conhecimentos e projetos. Para se caracterizar adequadamente a improvisação enquanto processo é fundamental recuperar definições advindas do meio artístico, campo onde a prática de improvisação é considerada uma das mais importantes qualidades de abertura da arte do século XX. As vanguardas artísticas do século XX, notadamente a partir de 1960, exerceram uma enorme influência no movimento Do It Yourself através da difusão de um pensamento de participação, autonomia e de apropriação de repertórios existentes. Paralelamente, correntes de pensamento projetual como, por exemplo, o Design Methods Group, também, se dedicaram a investigar novos modelos projetuais menos determinísticos, menos atrelados a metodologias científicas e melhor articulados com contextos de complexidade, iniciando um pensamento de abertura para a emergência da espontaneidade, da adaptação e da experimentação criativa. Donald Schön, pesquisador norteamericano do Massachusetts Institute of Technology, MIT, introduziu o modelo denominado reflexão-em-ação inspirado no estudo dos métodos criativos utilizados no jazz. Esse modelo será adotado como referência metodológica ao improviso pelo fato de ser considerado exemplar de um tipo de estrutura de produção do conhecimento mais intuitivo baseado em ciclos de feedback entre aprendizado e prática, reflexão e ação.
A teoria de Schön permite vislumbrar uma outra epistemologia possível dos processos projetuais, na qual é possível articular procedimentos de improvisação enquanto parte da estratégia criativa e reflexiva do projeto. Schön considera ser não apenas possível mas desejável que as ciências da organização, como a arquitetura e o design, sejam constituídas por estruturações flexíveis e adaptativas, e que incorporem métodos de reflexão abdutivos, experimentais e tácitos, aos moldes de uma jam session. Para o autor, a improvisação, tal qual exercitada pelos artistas, é um exemplo pertinente de processo adaptativo, focado na inovação ascendente e na construção coletiva, e que busca a todo instante produzir novos significados para vocabulários existentes. Tais qualidades improvisacionais podem ser igualmente identificadas em movimentos constituintes do Do It Yourself: a cultura maker, os FabLabs e HackLabs, as linguagens de código-livre, hardware livre, o Open Design e o Creative Commons. O interesse em abordar o improviso em contextos projetuais a partir de uma visão metodológica é amparado pela presença do que considera-se ser uma consciência emergente por um pensamento projetual mais flexível e experimental na atualidade, que reconhece os limites do pensamento clássico disciplinar e que busca modelos originais de apropriação para a enorme variabilidade de processos e linguagens computacionais como meio de transformação da formação e do exercício profissional.
Atributos da improvisação
Uma visão ampliada da improvisação na arte
A improvisação é um processo com forte vínculo com a práxis e que, ao contrário da visão tradicional do senso comum, demanda um conhecimento técnico apurado e um domínio consciente das dimensões sobre as quais se improvisa. Sua relação com a técnica é paradoxal: ao mesmo tempo em que depende dela, busca, a todo instante, transcendê-la. O improviso é tratado aqui em sua forma mais ampliada e que o considera um efeito decorrente de uma atividade artística aberta à experimentação, ao indeterminado, ao relacional e ao papel essencial da ação criativa espontaneamente produzida. Essa visão é amparada pela abordagem de Daniel Belgrad (1998) e pelo que ele denomina cultura da espontaneidade na arte. Ela inclui obras especialmente marcadas por um envolvimento existencial com a ação, com a performance, o ato e a gestualidade do processo. Nessa abordagem, é possível destacar, como grandes referências do raciocínio improvisacional do século XX, artistas como: Jackson Pollock, Miles Davis, John Cage, Merce Cunningham, Andy Warhol, Hélio Oiticica, personagens centrais das vanguardas artísticas e referências fundamentais para a evolução do pensamento criativo na arte. Essa geração espontânea tem como principal motivação a exploração de comportamentos e formações emergentes como forma de envolvimento com a indeterminação, o acaso, o jogo e a incerteza. Nessa geração, é possível identificar os atributos centrais da improvisação, dentre eles a configuração de princípios de organização flexíveis que orientam, mas, não determinam o modo como suas relações irão ocorrer.
Abertura e Compartilhamento na obra artística
Andy Warhol produziu, em 1962, uma série intituladaDo It Yourself, que consistia em um conjunto pinturas e desenhos nos quais o artista retratava parcialmente temas clássicos, como naturezas mortas, arranjos de flores, paisagens e barcos. Entretanto, as obras eram deixadas intencionalmente inconclusas pelo artista, sugerindo que, daquele ponto em diante, qualquer pessoa poderia potencialmente completá-las. Nos espaços inacabados das pinturas, Warhol deixava marcações contendo instruções de preenchimento, ligações de pontos e gráficos de referência para orientar a futura intervenção externa. Essa série apresentava, de modo subliminar, o desejo do artista em subverter o modelo autoral e centralizado de produção artística, propondo outro modo de criação da arte inspirado no anonimato. Ao obscurecer a noção clássica de autoria, ele apontava indiretamente para o apagamento do indivíduo na sociedade industrializada e na cultura de massa. O artista norte-americano soube sinalizar uma tendência que acompanharia a obra de vários outros artistas pós-anos 1960 e que estava relacionada com a perda de controle sobre as próprias produções. O compartilhamento do ato criativo com o até então espectador caracteriza uma abertura de 2o grau (PLAZA, 2000), ou seja, a transferência da responsabilidade criativa para o público que, a partir de agora, não se inscreve na obra apenas através do olhar, mas através do gesto. A relação dialógica obra-interator é um elemento central para a produção de ciclos de improvisação na arte.
Hibridismo de referências
Outro atributo importante da improvisação na arte é sua capacidade em hibridizar referências materiais e imateriais derivadas da cultura. Isso significa dizer que a improvisação não se origina “a partir do nada”, mas das recombinações e rearranjos de vocabulários existentes, muitas vezes contraditórios, os quais ela apropria como parte de seus fundamentos. Ingrid Molson (1996) explica que improvisação não é aleatoriedade, arbitrariedade, incoerência. Ao contrário, é “coerência através da contradição”. São a capacidade e a necessidade em articular referências de fontes variadas, combinando-as em novos enredos, situações, e instaurando novas narrativas e percursos de significação e uso. O improvisador é aquele capaz de apropriar de produtos culturais disponíveis, reinterpretá-los, realizar o que Michel Certeau define como atos de micropirataria (CERTEAU, 2011), ou Nicholas Bourriaud classifica como práticas de pós-produção (BOURRIAUD, 2009). A sérieReadymades de Marcel Duchamp pode ser considerada uma das precursoras do hibridismo improvisacional. É um exemplo notável da capacidade artística em apropriar e instaurar deslocamentos de sentido em seus elementos-base. O ato de hibridizar cria novos enredos para elementos existentes, reinventa trajetos singulares no seio da cultura a partir de suas referências e vocabulários mais banais. Inaugura um rompimento da arte com o inédito, o sublime e o heroico, e dessa forma instaura um raciocínio aberto ao improviso, ao cotidiano e ao comum. A improvisação envolve a capacidade de reprogramação, tal qual fazem os djs e programadores: apropriar, reencadear, relacionar, remixar, samplear, hackear e subverter.
Agenciamento coletivo
Há ainda um terceiro atributo chave na improvisação que merece ser destacado e que está diretamente relacionado com a capacidade de coordenar processos criativos colaborativos. Processos de improvisação denominados idiomáticos ou matriciais apresentam estruturas referenciais subjacentes que coordenam e orientam o desenvolvimento das ações. Em performances coletivas, como as jam sessions jazzísticas, a existência destas estruturas matriciais é o que permite a manutenção da coerência interna do processo mesmo sob o efeito de sucessivas variações, garantindo a continuidade da performance e sua evolução. Podemos comparar uma jam session a um sistema aberto e dinâmico de conversação dotado de uma estruturação interna maleável e cujos parâmetros e padrões iniciais podem ser reprogramados e redefinidos à medida que o processo evolui. Liz Danzico (2010) nos revela que Miles Davis, ao gravar Kind of Blue, álbum emblemático do cool jazz, utilizou um sistema matricial denominado modal jazz caracterizado por suas estruturações abertas e independentes que inovou as tradicionais progressões de acordes dos períodos anteriores como o bebop e o hardbob. Ela nos explica que o modal jazz não requer uma relação direta entre acordes e harmonia, mas os acordes podem ser relacionados a diferentes escalas modais cada uma delas operando independentemente de uma harmonia central e única. O resultado são músicas estruturalmente mais simples, com menor quantidade de acordes, mas dotadas de maior liberdade de variação, autonomia e improvisação para todos os músicos engajados nas gravações.
O modal jazz permite compreender como a concepção de um sistema matricial de relações pode agenciar um processo criativo coletivo, oferecendo autonomia para que cada parte desenvolva suas próprias variações e experimentações, sem que se perca a coerência interna do sistema. O sistema matricial aberto de relações caracteriza um tipo de método de interação entre músicos que vai além da mera interpretação de uma partitura, e abre caminhos para a experimentação individual, a manifestação de seus repertórios e suas bagagens internalizadas, que são espontaneamente lançadas e relançadas durante toda a decorrência da performance. Nas improvisações matriciais, o pensamento e a ação encontram-se diretamente implicados, retroalimentando-se recursivamente em busca da originalidade, da invenção e da expressão subjetiva. São as estruturações modais que criam essa interface dialógica entre os envolvidos no processo.
Os conceitos de estruturações referenciais e sistemas matriciais são o elo entre o improviso e a prática projetual contemporânea. O conceito de estruturações, ou frames, encontra-se presente no discurso metodológico projetual e propõe modelos de organização de projetos mais abertos, mais focados na ação, tal qual é realizado pelos movimentos Do It Yourself e seus múltiplos desdobramentos.
Uma nova visão do improviso na cultura projetual
Uma apresentação sucinta dos atributos improvisacionais na arte visa oferecer outra leitura do improviso diferente daquela que o considera como algo desestruturado, feito de qualquer jeito, de modo precário, inconsistente e de baixa qualidade. O campo artístico permite comprovar que atos de improvisação demandam preparação, domínio técnico, estruturação e um processo constante de experimentação prática e reflexão continuada. Para improvisar é preciso haver consciência do contexto, ter repertórios e embasamentos que possam ser recuperados em tempo real, de modo espontâneo e intuitivo. É agir de modo tático e adaptativo, realizando movimentos conscientes em situações que exigem desenvoltura e habilidade em contornar problemas, limitações e quadros de carência ou restrição. O improvisador atua em situações de risco, de instabilidade, incerteza, opera em espaços de manobras reduzidos e restritos, agencia soluções temporárias, mas passíveis de contínuas reconfigurações. Improvisacional é a capacidade que um dado sistema apresenta em assumir diferentes configurações sem comprometer de sua organização inicial.
Do it Yourselfe a improvisação
Elucidaram-se acima algumas das características que fazem com que o ato de improvisar encontre-se atribuído à cultura Do It Yourself. Esta é uma cultura de projetação que opera em condições semelhantes, e que frequentemente encontra na improvisação um modo espontâneo de articular seus desafios. Ao “fazermos-nós-mesmos”, com nossos próprios recursos e habilidades, assumimos todas as vantagens e também todos os riscos decorrentes da informalidade que caracteriza este processo. Por exemplo, as proposiçõesDo It YourselfLiving Structures, do arquiteto Ken Isaacs, ofereciam às pessoas uma alternativa para construírem suas próprias habitações, mas, para que isso fosse realizado, elas deveriam empenhar-se em “colocar a mão na massa”, afirmava o arquiteto. Essa proposta foi inicialmente concebida como um manual de informações construtivas, um kit baseado em técnicas simplificadas, materiais convencionais de fácil manuseio, e bem adaptadas à lógica das chamadas oficinas de garagem. Além de propor uma alternativa economicamente mais vantajosa, o sistema encorajava o envolvimento pessoal dos usuários com a atividade manual, incentivando uma nova sensibilidade em relação ao valor da experimentação, da invenção, da ação prática e do trabalho coletivo. Isaacs desenvolveu este projeto inspirado em um posicionamento crítico contrário à cultura americana da eficiência, do consumo, que forçava as pessoas ao endividamento e a um papel de absorvedores passivos de um padrão de vida idealizado (ISAACS, 1974).
Living Structures, de Ken Isaacs, influenciou iniciativas contemporâneas comoOpenStructures de Thomas Lommée, responsável por articular, através da Internet, uma plataforma destinada a criar uma rede horizontal de colaboração projetual e compartilhamento de componentes e estruturas de design. Através da distribuição gratuita de arquivos 3D para prototipagem rápida diretamente aos usuários finais, OpenStructures oferece uma autonomia para a configuração e produção de objetos pessoais visando um desvencilhamento possível dos altos valores no mercado, do monopólio das redes comerciais, das altas taxas das empresas de logística e de cartão de crédito. Todo o processo apresenta qualidades improvisacionais, marginais, alternativas, substitutivas, com custos operacionais menores e maior engajamento individual. A produção pessoal pode ser posteriormente compartilhada com outros usuários, criando, assim, uma rede dialógica de referências e colaborações.
O movimento conhecido como Open Design, do qual fazem parte Thomaz Lommée, Ronen Kadushin e Jeans Dyvik procura, nas plataformas digitais da Internet, mecanismos para subverter o domínio da cultura industrial, da especialização, da estandardização, oferecendo caminhos alternativos para que os usuários evitem as armadilhas da padronização, da inflação desmedida, do design assinado, da cultura da aparência, e possam, ao mesmo tempo, agregar valor e qualidade aos seus ambientes pessoais. Favorecem, ainda, a troca de informações e projetos entre redes profissionais, permitindo que grupos diferentes compartilhem ideias, troquem estruturas já iniciadas, desenvolvam projetos de outras fontes e possam criar um ciclo de improvisações compartilhadas.
Aprender fazendo
As práticas Do It Yourself vêm ganhando uma importância significativa na produção do conhecimento projetual contemporâneo, constituindo-se como um verdadeiro campo de experimentação da improvisação. A produção compartilhada de projetos a partir de apropriações multilaterais desperta táticas de reprogramação e reciclagem de materiais, de objetos subutilizados, a realização de downloads de tutoriais, templates e modelos a partir de sites comoInstructables,Makezine,123Dapp,Thingiverse. Está sendo criada, de fato, uma nova demanda de raciocínio projetual, com habilidades de hibridação, criação coletiva e compartilhamento. Em termos operacionais e práticos, trata-se de um processo que aproxima criadores de usuários e vice-versa, bem como torna viável a experimentação direta de protótipos através de um contato maior com processos hands-on e learning by doing.
A expansão da rede de laboratórios de fabricação digital, os FabLabs, incentiva a lateralidade do conhecimento de novos mecanismos de criação, produção e compartilhamento de equipamentos, objetos e sistemas eletrônicos. Nesses ambientes de criação coletiva, é comum a realização deFabJams, momentos exclusivamente dedicados à invenção e elaboração de protótipos, sistemas e soluções experimentais para problemáticas de caráter local. Diretamente inspiradas nas jam sessions, esses eventos reúnem profissionais e amadores, de modo presencial e não-presencial, que exercitam juntos a capacidade de improvisação coletiva. No intervalo de poucas horas, são capazes de produzir fisicamente soluções viáveis para situações-problema específicas, tratadas como temas. As Fabjams subvertem a ordem linear de um projeto tradicional, não disponibilizando tempo para a elaboração de desenhos detalhados e mecanismos de representação ou notação. Das ideias iniciais, há um salto direto para a construção de protótipos. Sobre estes protótipos, inicia-se um ciclo constante de aperfeiçoamentos via novas e subsequentes versões da mesma ideia. Não há hierarquias definidas. O processo caminha a partir da definição e redefinição de padrões que evoluem respeitando a coerência da proposta inicial. Em termos gerais, o objeto final criado não é mais importante do que todos os momentos parciais para sua elaboração, a troca de experiências, o aprendizado adquirido e compartilhado, e a disponibilização das informações para futuros desdobramentos.
De fato, presenciamos um momento de confluência de iniciativas de agenciamento criativo projetual que assume uma configuração informal, e apresenta resultados significativos que permitem imaginar uma outra epistemologia da projetação. A capacidade de improvisação é uma demanda para este momento de abertura do conhecimento e de compartilhamento de saberes. Projetistas contemporâneos são hoje exigidos a operar contextos cada vez mais complexos, dinâmicos e heterogêneos, e a enfrentarem situações-problema novas para as quais ainda não desenvolvemos respostas. É preciso que tenham a capacidade de propor princípios de organização flexíveis, estruturas adaptativas, formações interativas em maior sintonia com usuários e contextos. Devem reconhecer os limites na formação tradicional de projeto e ter a capacidade de subverter e transgredir modelos rígidos de planejamento. Demandam um tipo de habilidade de raciocínio de profunda reflexão-em-ação a qual denominamos: raciocínio improvisacional.
Reflexão-em-ação: uma metodologia para o improviso
O modelo de reflexão-em-ação proposto por Donald Schön é uma referência metodológica importante para estruturar o raciocínio improvisacional em função de dois aspectos principais: primeiramente, porque é um modelo de pensamento centrado-na-ação, ou seja, considera que, na prática projetual, o conhecimento encontra-se em nossas ações e que, mesmo quando fazemos o uso consciente de técnicas e teorias baseadas em pesquisas científicas, sua aplicação é dependente de um reconhecimento tácito, de julgamentos e habilidades pessoais (SCHÖN, 1983). O know-how, conjunto de conhecimentos internalizados a que recorremos a priori à ação, é considerado por Schön e também por Nigel Cross (1981) como hábil em subverter regras e encontrar táticas súbitas, acidentais e espontâneas de reprogramá-las. As práticas de improvisação respondem a esse mesmo raciocínio: são processos anárquicos, que transcendem continuamente modelos pré-estabelecidos e estão diretamente vinculados aos padrões individuais de ação do improvisador.
Além disso, todo o desenrolar de um processo de reflexão-em-ação é coordenado pelo que o autor define como frames. De acordo com Schön, frames são estruturações programáticas iniciais que um projetista elabora de modo a sintetizar linhas de ação relativamente autônomas. Estas estruturações funcionam como matrizes de referência que orientam, mas, não determinam o modo como se desenvolve o processo de reflexão-em-ação. Um sistema de implicações existente entre tais linhas de ação permite que a organização do processo avance sem perda de sua coerência interna. De modo análogo, processos de improvisação matricial respondem ao mesmo tipo de estruturação e comportamento. São programações subjacentes que definem parâmetros de referência para que as inúmeras variações da improvisação sejam sempre congruentes.
Estruturando(framing) problemas complexos
A utilização das estruturações matriciais é parte integrante de metodologias projetuais dedicadas a buscar soluções para problemas de complexidade. Problemas complexos são caracterizados pela indefinição de suas causas diretas, pela unicidade de suas articulações, pela ausência de métodos prévios a serem aplicados, pela falta de critérios convencionalizados para decidir objetivamente as melhores soluções e pela ausência de pontos fixos de término no esforço de resolvê-los (SCHUMACHER, 2012). A configuração indomável destes problemas desafiam a pura racionalidade dos processos projetuais e a aplicação direta de códigos, regras ou princípios globalmente estabelecidos. Donald Schön afirma ser necessário implementar processos dialógicos de conversação com a situação-problema para que possamos dar respostas projetuais adequadas diante de cenários de complexidade (SCHÖN, 1983).
Os frames correspondem a esquemas iniciais de aproximação à situação-problema que comportam as hipóteses e pressupostos preliminares. Após sua definição inicial, passa-se a uma etapa projetual caracterizada por uma sequência de ações e movimentos através dos quais se tenta adaptar a situação-problema ao esquema proposto. A cada ação de adaptação realizada sucede um instante de reflexão em que são analisados e avaliados os desdobramentos imediatos da ação realizada. O processo assume o diagrama de uma espiral. Em processos complexos, novos e inesperados feedbacks emergem da situação-problema a cada movimento realizado. Por conta disso, a estruturação inicial está sujeita a reconfigurações constantes em função do caráter de indeterminação e incerteza que envolve as tentativas de agenciamento do problema.
É importante esclarecer que o padrão de raciocínio estabelecido em um modelo de reflexão-em-ação possui uma natureza consideravelmente experimental e aberta ao acaso e, em função disso, distingue-se da natureza do raciocínio científico. É justamente o desvencilhamento da natureza do raciocínio projetual do rigor científico que permite ponderar a improvisação enquanto tática de articulação e adaptação nos processos de projetação. Nigel Cross considera que os métodos de projeto diferenciam-se dos métodos científicos porque utilizam diferentes tipos de conhecimento organizado, dos quais o científico é apenas um deles (CROSS et al., 1981). Na visão de Cross o ato de projetar é uma atividade de caráter tecnológico e propositivo, que ocorre em um contexto organizacional voltado para a criação de “coisas novas”, e não apenas para a análise de “coisas existentes”. Em seus termos, o método científico configura-se como um comportamento analítico orientado em apurar e tentar encontrar a natureza do que é existente. Já o método projetual é um comportamento construtivo empregado na invenção do que ainda não existe, ou então destinado a agregar valor a algo já foi produzido (CROSS et al., 1981). Edgar Morin & Jean-Luis Le Moine (2000) explicam que a dedução e a indução são procedimentos que fundam os pilares do raciocínio científico determinista; o primeiro busca conclusões a partir de proposições e premissas preliminares e o segundo, de modo inverso, analisa fatos particulares para alcançar princípios mais gerais (MORIN; Le MOIGNE, 2000). No entanto, além do raciocínio dedutivo e indutivo, o raciocínio projetual demanda de outro tipo de raciocínio: o abdutivo.
Raciocinando Abdutivamente
O raciocínio abdutivo possui características similares à condição tecnológica-propositiva do pensamento e da prática projetual. Isso porque está associado a comportamentos criativos e inventivos, mais do que propriamente conclusivos. Ele tem objetivos direcionados em agregar valor a situações existentes, refletindo sobre modos possíveis de apropriação dos elementos contextuais disponíveis tendo em vista sua reconfiguração, renovação ou reprogramação. Esta índole inventiva que apropria, analisa e reconfigura elementos existentes é a base dos processos de improvisação. O raciocínio abdutivo é o elemento central de correntes contemporâneas de discussão metodológica como, por exemplo, o Design Thinking. Conforme nos explica Kees Dorst (2011) o Design Thinking interessa-se por novos repertórios e estratégias para lidar com os desafios complexos e indomáveis nos modos de organização contemporâneos. Ele lida, particularmente, com mecanismos através dos quais projetistas possam criar frames, ou estruturações flexíveis (DORST, 2011). Recuperam-se aqui as mesmas reflexões propostas por Schön (1983), de que tais estruturações são conjuntos de referências que permitem descrever uma situação-problema sugerindo princípios operativos para reprogramá-la e agregar valor a ela. Assim como num processo de improvisação, novas e inesperadas relações vão continuamente ocorrendo ao longo do tempo, demandando a adaptação da estrutura inicial através de ações temporárias. Em outras palavras, frames são princípios operativos, um conjunto de implicações que orienta o modo como determinado sistema de relações se adapta ao longo do tempo.
O raciocínio abdutivo é um raciocínio divergente, situacional, local. Busca superar a ideia de composição pela de agenciamento, coordenando singularidades mais do que propriamente construindo-as separadamente. É um processo de constante rearranjo e adaptação, testes e aplicações, análises e conclusões parciais. A natureza cíclica do raciocínio abdutivo configura o diagrama espiral de relações recursivas. Ao contrário de um processo convergente de eliminação de erros, trata-se de um processo divergente de hibridação de formas.
Centrando o pensamento na ação
As práticas Do it Yourself possuem uma íntima e inseparável relação com a prática. No entanto, não se abstêm da teoria e da pesquisa, mas as condicionam em função da ação prática. Segundo Henry Sanoff (2007), processos de pesquisa centrada-na-ação (action centered) consideram o ato de pesquisar não apenas como um processo de produção do conhecimento, mas como a construção de uma consciência mobilizada para a atividade prática. Trata-se de uma metodologia que busca a simultaneidade entre entendimento e transformação. A improvisação pode ser considerada resultado de procedimentos análogos à pesquisa centrada-na-ação. É nesta condição dialógica entre uma ação realizada, a análise dos resultados, o aprendizado proporcionado e a realização de uma nova ação, que se instaura a prática improvisacional. Tanto a improvisação quanto a pesquisa centrada-na-ação buscam, cada uma à sua maneira, construir pontes entre a teoria e a prática, e articular novas perspectivas para o aprendizado, para processos de socialização e de organização ascendentes. Ambas possuem uma natureza tática, um comportamento da ordem da astúcia, que opera por golpe, e que aproveita das ocasiões circunstanciais (CERTEAU, 2011).
Schön (1983) comenta que um processo centrado-na-ação pode ser comparado a um jogo entre hipóteses e resultados. Os limites estabelecidos para cada movimento neste jogo respondem ao que ele define de lógica das afirmações: quando uma ação falha em realizar o que se tem como intenção e produz consequências consideradas indesejadas, o investigador examina a teoria implícita nesta ação, criticando-a, reestruturando-a, testando uma nova teoria e inventando um movimento consistente com ela. A sequência de aprendizado, iniciada pela negação de uma ação, termina quando uma nova teoria leva a uma nova ação que é confirmada.
A cultura maker ainda é considerada uma cultura projetual alternativa de produção de espaços, objetos e sistemas porque é agenciada pelo princípio do “aprender-fazendo”. Não há dúvidas de que ela é uma manifestação sintomática da pesquisa centrada-na-ação, que testa possibilidades a partir da construção experimental de protótipos, e para isso utiliza-se de um conhecimento compartilhado, informal, socialmente interativo e articulado em redes coletivas. A cultura maker utiliza-se da improvisação como modo de potencializar a inventividade, a inovação e a exploração da baixa-tecnologia. Baixa-tecnologia não é tecnologia rudimentar, mas tecnologia economicamente acessível em contextos não-industriais. Sua manipulação estimula a criação através da prática e da troca de experiências. Acreditamos que a cultura maker, o improviso e o Do it Yourself certamente nos abrem caminhos para uma outra epistemologia de projeto.
Análises conclusivas
São inúmeras as contribuições que as práticas Do it Yourself oferecem para o pensamento contemporâneo. Este artigo buscou elucidar metodologicamente o modo como elas são operacionalizadas, quais estruturas de pensamento utilizam e como agenciam a produção do conhecimento. No entanto, as reflexões por elas instauradas transcendem os limites do que é tratado aqui. Dentre as inúmeras questões que se abrem diante desse modelo alternativo de raciocínio e ação estão aquelas de cunho epistemológico, que tangenciam a prática de arquitetos, artistas e designers. Certamente promovem uma valorização de uma nova sensibilidade da criação, valorizando o conhecimento tácito, o contato direto com materiais e formas, e uma condição experimental quase artística de investigação. Abrem ainda novas perspectivas para o conceito de reciclagem, reapropriação de formas, repertórios e vocabulários, fomentando a criação a partir do existente, do dado, ou do que pode ser “baixado”. Instauram um pensamento de autonomia frente à condição reprodutiva e serializada da indústria, incentivando a produção compartilhada, a mutualidade e a importância do que é “comum”. Surgem como uma manifestação emergente da complexidade, respostas à inoperabilidade das práticas normativas na sociedade contemporânea e sintoma da falência das metanarrativas.
O modelo de reflexão-em-ação elaborado por Donald Schön (1983) permite vislumbrar possíveis métodos para considerar a improvisação um modelo projetual aberto que dê suporte para essa nova condição criativa e produtiva que vem sendo configurada pelas práticas Do it Yourself. O desenvolvimento ascendente de tecnologias de código aberto e a evolução de sistemas de fabricação, interação e processamento demandam um novo modelo de raciocínio aplicado e uma outra epistemologia de articulação do conhecimento projetual. Acreditamos que o raciocínio improvisacional contribui para a formação de novas sensibilidades, novas mentalidades e comportamentos. Alimenta uma cultura de experimentação e investigação centrada na produção compartilhada e no desenvolvimento de projetos cada vez mais articulados com as demandas locais.
Vilém Flusser (2007) parece concordar com um modo improvisacional de raciocínio ao afirmar que no futuro todos poderão se apropriar das coisas existentes, transformá-las e utilizá-las. Nossa relação com as máquinas é profunda, cada vez mais complexa. Não devemos nunca nos colocar em uma posição confortável diante delas, ou nos deixarmos ser dominados. Devemos, ao contrário, assumir o comportamento do “fotógrafo diante da câmera”, tal qual comenta o autor. A relação fotógrafo-máquina assemelha-se a um jogo. O fotógrafo deve buscar aprender as “manhas” do aparelho, penetrá-lo, amalgamar-se a ele e se perder na busca de potencialidades escondidas. Deve encarar a caixa-preta como um desafio. Não deve nunca jogar com ela, mas contra ela. Afinal, as melhores fotos são aquelas que evidenciam a vitória da intenção do fotógrafo sobre os limites impostos pela máquina (FLUSSER, 2002).
Agradecimentos
Gostaria de deixar meus agradecimentos aos colegas do LabVisual da FAU/USP, especialmente o professor Dr. Carlos Zibel Costa, aos colegas do Grupo de Pesquisa Conexão VIX da UFES, ao apoio do programa Prodoutoral da CAPES e ao apoio do programa Universal da FAPES.
Referências
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