Sérgio Amadeu da Silveira é doutor em Ciências Políticas e professor da Universidade Federal do ABC. Coordenador do Grupo de Pesquisa Cultura Digital e Redes de Compartilhamento. Foi presidente do Instituto Nacional de Tecnologia da Informação e membro do Comitê Gestor da Internet no Brasil. Pesquisa relações entre comunicação e tecnologia, sociedades de controle e privacidade, práticas colaborativas na Internet e a teoria da propriedade dos bens imateriais.
Marcelo Tramontano é Doutor e Livre-docente em Arquitetura e Urbanismo, com pós-doutorado em Arquitetura e Meios Digitais. Professor Associado e pesquisador do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (IAU-USP), onde coordena o Nomads.usp, Núcleo de Estudos de Habitares Interativos. É editor-chefe da revista V!RUS.
Como citar esse texto: SILVEIRA, S. A.; TRAMONTANO, M. Fortalezas do pensamento não podem ser destruídas por bombas. V!RUS, São Carlos, n. 13, 2016. Disponível em: <http://143.107.236.240/virus/virus13/?sec=2&item=1&lang=pt>. Acesso em: 07 Abr. 2025.
Marcelo Tramontano: Sérgio, o que é notícia?
Sérgio Amadeu da Silveira: A ideia de notícia nasce muito vinculada à ideia de imprensa, simultaneamente à emergência da imprensa na modernidade. Por sua vez, a imprensa surge como algo fundamental para a sociedade de massas e para a emergência dos Estados nacionais. A notícia é, assim, a produção de informações realizada por alguém. Em geral, nas sociedades dominadas exclusivamente pelas mídias de massa, as notícias eram produzidas por corporações que tratavam de dar prioridades para algumas informações e não para outras. Pautavam a sociedade, organizavam aquilo que a sociedade deveria saber e discutir. Isso é notícia.
A ideia de notícia vai se alterando com o surgimento das redes sociais online. Aliás, até mesmo antes disso, quando emerge a Internet, e ocorre uma inversão do fluxo informacional. Aqueles que antes conseguiam ter canais para falar amplamente, como o rádio, a televisão, o jornal impresso, passam a disputar com uma rede distribuída, que é a Internet, que não teve uma única fase, mas que permite que as pessoas criem suas notícias também. O difícil, na Internet, não é transformar um fato em notícia. O difícil não é falar, não é postar um vídeo, não é argumentar. O difícil é ser ouvido, é ser visto. Passamos, então, de uma economia da disseminação, da difusão, para uma economia da atenção. A Internet inverte o jogo. Muitos passam a disputar a possibilidade de criar notícias. Claro que não somos ingênuos de achar que os grandes grupos que já existiam no mundo industrial não se reposicionaram, adentrando as redes e também conseguindo pautá-las mais do que um cidadão comum. Há uma assimetria muito grande na distribuição da informação, por mais que tenha existido uma inversão do ecossistema informacional com a emergência da Internet.
Por outro lado, a grande mídia, os grandes grupos de poder, já não tem tanta facilidade de abafar e controlar informações como tinham no mundo industrial, um mundo controlado pela mídia de massa. Eles têm, agora, que enfrentar uma profusão de coletivos, de mensagens, e a qualquer momento uma pessoa comum ou um grupo menor pode trazer uma informação que se transforma em notícia e acaba ganhando repercussões gigantescas nas redes digitais. Nem mesmo o poderoso Estado norte-americano conseguiu impedir que um grupo diminuto de hackers, jornalistas e ativistas, reunidos em torno do Wikileaks, divulgasse documentos importantes que desmascaravam o discurso oficial do Estado mais poderoso do mundo. Temos, então, um jogo da produção de notícia, hoje, na Internet, muito mais rico e diversificado que antes, mas que não destruiu as assimetrias de poder.
No universo dos blogs, por exemplo, antes do surgimento de algumas redes sociais, em particular do Facebook, o jogo era mais democratizante, menos controlado do que a produção de notícias dentro dessas redes. Por quê? Porque o Facebook efetivamente controla a visualização de uma informação. Para atingirem amplamente o público que elas querem atingir, as pessoas têm que contar com a benevolência dos algoritmos do Facebook ou têm que pagar pelo serviço. Dessa forma, dentro da Internet, que é uma rede distribuída, essa rede social verticaliza novamente os fluxos de informação. E ela devolve ao Capital o grande poder que ele tinha no mundo da mídia de massa, no qual as grandes corporações, com um volume gigantesco de recursos financeiros, podiam fazer propagandas, colocações, comprar edições de jornal.
No caso do Facebook, percebe-se que grandes grupos econômicos, grandes corporações, políticos com muito dinheiro, passam a pagar para obter mais visualizações de suas informações. Nesse novo terreno das redes sociais onde notícias são produzidas, divulgadas, disseminadas, compartilhadas, o Facebook guia-se por critérios completamente obscuros, por definições de algoritmos que nós não controlamos, comandados por um grupo privado que controla a plataforma onde ocorrem amplamente debates e a disseminação de informações. Hoje, a notícia é disputada na Internet. O jogo ficou mais complexo e, por haver diversos grupos que disputam suas verdades na rede, que disputam o que noticiar e de que ângulo noticiar, nós talvez tenhamos a sensação de que estão existindo enfrentamentos muito intensos, que antes não existiam.
De fato, no mundo dominado pela comunicação de massas, enfrentamentos tão nítidos não eram visíveis, pois poucas pessoas tinham o poder de fala como hoje. Nós não podemos ser românticos e achar, como querem alguns, que, antes da Internet, existia um debate habermasiano, voltado ao entendimento, e que esse debate deixou de existir. No mundo da mídia de massa não havia debate algum, ou havia apenas o debate consentido. Agora, existem enfrentamentos, ou pouco debate e muito enfrentamento. Mas nem por isso devemos achar que se trata de uma situação onde somente o ódio prevalece. Percebemos, sim, que estamos vivendo um período no qual valores que muitos acreditavam estar consolidados na sociedade, não estão. E é bom que isso fique claro. Eu acho extremamente positivo percebermos que ainda temos muito que avançar na chamada defesa da diversidade, da tolerância, do respeito ao outro. E que, na verdade, a tolerância e o respeito à opinião do outro são elementos-chave para se estabelecer uma sociedade democrática, centrada na diversidade e não no pensamento único.
Por outro lado, estamos vivendo, em paralelo, o culto ao pensamento único e às formas excepcionais de poder. O teórico e filósofo italiano Giorgio Agamben disse, há muito tempo, que estávamos vivendo um novo paradigma de governo baseado na exceção. No seu livro “Estado de exceção”, ele começa discutindo o 11 de setembro e, em seguida, trata do homo sacer, uma figura estranha existente na Roma Antiga. Ele vê surgir essa figura a todo momento, no nosso quotidiano atual, em diversas regiões do mundo. Agamben acredita que ela constitui a exceção e que, para defender a lei, é preciso sempre violá-la. Para defender a constituição, para defender os bons, os justos, alguns acreditam que o poder tem que agir excepcionalmente. Essa lógica passa a ser um paradigma de governo, amplamente defendido. Ao constatarmos que essa lógica do Estado de exceção ganha corpo em um determinado pensamento que temos atualmente no Brasil - uma espécie de neofascismo -, percebemos que nunca olhamos com a devida atenção para um certo discurso de entretenimento baseado na espetacularização do crime. Esse discurso exagera os conflitos que acontecem na nossa sociedade, partindo da compreensão que um conflito é um absurdo e que, portanto, se há conflito, há crime. Nós temos que dar um basta nisso.
Há uma profusão de programas de violência policial, exibidos na televisão, que cultuam a lógica da exceção. "A lei é para defender bandido". Esse pensamento está sendo colocado há muito tempo. Essa colocação tem uma estética, uma estética da violência e da polícia, do Estado policialesco, e toda estética é portadora de valores, toda estética traz ética. A ética que esses programas cultuam é completamente totalitária, é uma ética que desconhece os conflitos, os confrontos sociais, que desconhece as matrizes que levam a esses confrontos. Ela simplifica soluções, como se a causa de existirem criminosos fosse o fato de a polícia não agir com o devido rigor. Isso quereria dizer que, se agirmos com o devido rigor, não haverá mais crime. Essas lógicas simplistas proliferam juntamente com valores da sociedade que também deixamos de considerar nas nossas reflexões. Vários pensadores até consideraram, mas eles situavam-se um pouco à margem do grande debate filosófico das ciências sociais, que é a questão de o nosso país ter convivido, nos seus pouco mais de 500 anos de vida, com 400 anos de escravidão. Essa questão deixou marcas profundas na nossa sociedade, que não foram enfrentadas.
Durante a maior parte do século XX, convivemos com regimes autoritários no nosso país, com golpes e ditaduras, e agora, no século XXI, temos um novo golpe. Alguns dizem que o que estamos vivendo não é um golpe, pois não há participação dos militares. Para quê militares? Os militares não precisam pôr tanques na rua: a polícia já é militar. Nós nunca enfrentamos a militarização oriunda da ditadura militar, que continuou nas ruas tratando as periferias como áreas de ocupação, considerando que, ali, não há população, mas criminosos acobertados nas favelas, nas casas, nos cortiços. É esse o pensamento desses policiais. Não é à toa que eles chamam de "unidade tática", ROTA, ou coisa que o valha, seus veículos com quatro homens fortemente armados. Eles constituem tropas de ocupação nas áreas periféricas. Em nenhum momento isso é polícia. Polícia é uma atividade civil, uma atividade de defesa da sociedade, uma atividade que, inclusive, enfrentou polêmicas para instalar-se em Londres, por exemplo. Há, enfim, todo um debate sobre o que é uma polícia. Mas no Brasil não existe esse debate. Polícia aqui é, na verdade, uma tropa de ocupação. E se, em 1964, foi necessário colocar tanques nas ruas para mostrar a força do militarismo, hoje, basta colocar a ROTA na rua.
O governador de São Paulo coloca a polícia nas ruas para agredir jovens estudantes, o que gera uma situação muito interessante. Alguns juízes não permitiram que a polícia fizesse reintegração de posse com adolescentes, menores de 18 anos nas escolas [públicas de primeiro e segundo grau ocupadas]. Para evitar que essas ordens judiciais passassem a ser proferidas atrapalhando os planos de fechamento de escolas do seu governo, o governador coloca como Secretário da Educação um juíz, ex-desembargador do Tribunal Superior de São Paulo. E por que ele faz isso? Exatamente porque o seu partido político, que organiza hoje, no Brasil, a principal ação de supremacia total do mercado, de totalitarismo mercantilizador, traz uma nova face do velho autoritarismo, que entende questões sociais como caso de polícia, mas com uma nova roupagem. Tudo isso tem raízes em valores que nós não tratamos na sociedade.
É claro que estamos vivendo uma onda conservadora no mundo todo. As alternativas dos Estados Unidos não eram boas: Donald Trump contra Hillary Clinton. A alternativa boa que eles tinham, à esquerda, democrática, não conseguiu vencer as prévias. Na Espanha, tinha-se uma esperança muito grande no Podemos, que, na verdade, não tem conseguido avançar como acreditávamos que avançaria. A própria direita se organiza e dá uma nova cara para o Ciudadanos e outros grupos que também disputam um novo discurso. Mas sabemos que esse novo discurso é, na verdade, o velho recado totalizante. No mundo inteiro, tem havido um recrudescimento de valores antidemocráticos, vamos dizer assim. Não há, portanto, uma grande surpresa na afirmação de que o que estamos vivendo, no Brasil, é um renascimento de discursos que talvez nem precisassem renascer, pois estavam ao nosso lado o tempo todo. As nossas camadas economicamente dominantes - as classes média e média alta - não conseguem conviver com a diversidade durante muito tempo. Eles não querem direitos, querem privilégios.
Marcelo Tramontano: Há, ainda assim, uma certa surpresa nesse processo que você descreve e que resultou em um golpe de Estado, esse ano, no Brasil. É o apoio que esse golpe recebeu de grupos sociais historicamente oprimidos, incluindo muitos habitantes de periferias pobres. Por outro lado, houve - e há - uma manipulação na construção de notícias e na divulgação de informações por parte de grandes empresas de comunicações visando moldar opiniões, desacreditar seus adversários e induzir ações da população. Você vê uma relação entre esses dois fatos?
Sérgio Amadeu da Silveira: A maioria da população das periferias não se mobilizou com o que nós estamos qualificando como golpe. O que houve mesmo foi, principalmente, uma manifestação das camadas médias. Pelo menos nos lugares onde eu acompanhei, como São Paulo, Belo Horizonte e Rio de Janeiro, essa mobilização foi fundamentalmente da classes média e média alta. É, no entanto, igualmente surpreendente que essas camadas médias tenham aderido a isso. Dentre as causas dessa adesão, eu vejo o fato de que os valores democráticos, da convivência com a diversidade, a aceitação de que o trabalho é nobre e deve ser respeitado, mesmo para aqueles que realizam trabalhos manuais, não foram muito bem incorporados por essas camadas. Elas defendem a ideia da casa grande contra a senzala, e de que quem trabalha não merece respeito. O discurso do trabalho enobrecedor só é usado de uma maneira mítica. Na prática mesmo, no dia a dia, as elites e as camadas médias que se projetam nela não aceitam direitos básicos dos trabalhadores.
Um exemplo disso foi a grande virada ocorrida, em 2012 ou 2013, quando outorgaram-se direitos mais concretos às empregadas domésticas, no Brasil. Foi um turning point para a classe média. Muitas pessoas ficaram indignadas porque tinham aquela compreensão aristocrática: "eu faço parte de uma certa camada social, pago uma pessoa como serva, então nós não temos uma relação integral de trabalho: ela faz favores, eu faço favores". De acordo com essa maneira de pensar, o patrão doméstico se vê como superior à empregada e vê como uma concessão o fato de "até mesmo deixar essa pessoa dormir na minha casa”. Essas coisas são muito fortes, e quando se começa a mudar a estrutura social do país, afeta-se essas camadas médias que se rebelaram contra a mínima distribuição de renda ocorrida no país. Foi uma pequena distribuição de renda, em um período de tempo muito curto.
Por outro lado, houve uma penetração muito grande da ideia, muito difundida pelo próprio governo Lula, de que o importante é incluir mais parcelas da população nas práticas de consumo. Ou seja, o mercado continuou a ser o epicentro da sociedade. Organizaram-se movimentos culturais importantes nas periferias, mas que, de certa maneira, colocam-se no mesmo sentido de supremacia do mercado. Por exemplo, o movimento do funk ostentação, que é o culto ao dinheiro, ao consumismo: alguns pesquisadores vêem esse movimento em uma perspectiva positiva, que seria a da periferia também reivindicando seus direitos. Eu tendo a achar que não são exatamente direitos que eles querem, mas dinheiro para consumir. E a lógica do consumo não se baseia em direitos, mas na mercadoria, em ter poder de compra. Mas aí pode-se perguntar: "mas isso não é a mesma coisa que a luta sindical?" É claro que não! A luta sindical é uma luta em que buscamos direitos de remuneração razoáveis para que todos nós, da nossa classe, possamos ter um padrão de vida decente, melhores condições de vida e de trabalho. O que o funk ostentação cultua é o individualismo exacerbado, que acredita no poder total do dinheiro. Essa lógica não é muito positiva para quem defende que é preciso superar adversidades no país, que temos que ter solidariedade, que o mercado não é tudo, que nem toda lógica deve caminhar para o contexto da competição. É preciso cultuar também a colaboração, o compartilhamento.
Eu penso que muitos dos segmentos que aderiram a essa onda puxada pelos conservadores e pela mídia mais forte vão rapidamente se desgastar e gradativamente desgarrar-se dela, porque as suas condições de vida vão piorar. Mas, hoje, nas periferias, não há mais o trabalho político das esquerdas organizadas. Há, no caso de São Paulo, a disciplina imposta pelo PCC [Primeiro Comando da Capital, organização criminosa], que é quem faz de fato a justiça das pequenas causas nas periferias. Não há mais comunidades eclesiais de base, e sim igrejas evangélicas. Elas têm uma relação com o fiel de controle político que a igreja católica nunca teve. Não existe ali um enfrentamento de valores. Ele existe no movimento estudantil dos jovens que estão ocupando escolas, no movimento por habitação, mas que precisam avançar muito mais.
Marcelo Tramontano: Vamos aprofundar isso um pouco. Por um lado, há décadas que, particularmente no Brasil, a imprensa corporativa - televisiva, impressa, radiofônica - desempenha um papel muito importante na formação do que alguns chamam de opinião pública. A comunicação de massa utilizada por esses meios, um modo de comunicação "de um para muitos", contrasta com a comunicação distribuída das redes online, "de muitos para muitos", e que pode, como você disse, ser mais democrática. No entanto, o Estado e, individualmente ou em grupos, seus agentes - nas esferas executiva, legislativa e judiciária - também tem cada vez mais utilizado as redes online procurando moldar a opinião pública.
Sérgio Amadeu da Silveira: Na minha opinião, estamos vivendo uma situação de reagrupamento daqueles que têm a vocação de atuar pelas transformações sociais. Vemos, por um lado, uma ofensiva dos setores mais reacionários, que conseguiram arregimentar as camadas médias. Estes setores têm uma grande força. Eles usaram muito as técnicas de redes [sociais online], usaram muitos recursos publicitários, e, efetivamente, usaram linguagens de mobilização das redes. Isso é bastante curioso, porque algumas pessoas tinham a ilusão de que as redes digitais eram, em essência, colaborativas e sempre no sentido democrático. Isso não é verdade, pois, já há algum tempo, as redes foram inundadas pelas corporações e pelo pensamento único. Não temos nenhuma ilusão em relação a isso: as redes também são terreno do Capital.
As redes, no entanto, permitiram o surgimento de vários coletivos rebeldes, agindo no exercício de contra-poder, de enfrentamento dos regimes de verdade estabelecidos pelo Estado. Mas isso tem sido feito em um ambiente ambivalente, com tecnologias ambivalentes. Temos aí, portanto, um enfrentamento no qual a esquerda mais tradicional só agora percebeu que ela terá de se preparar para um embate discursivo de grande intensidade, contínuo, que é o que acontece nas redes. O que consolida o golpe atual, no Brasil, é uma fusão do poder judiciário - que, no Brasil, há muito tempo, é um poder dos coronéis, dos filhos de fazendeiros, dos filhos dos banqueiros, da elite da elite - com uma operação midiática. Sem que se criassem teses como a do domínio de fato, sem que se fizesse uma seleção do que olhar e não olhar, sem que se fomentasse, portanto, uma postura seletiva, não se teria conseguido implementar toda essa operação que mobilizou grande parte do país contra um governo instaurado. Não se teria conseguido que a população não se rebelasse nas ruas, de maneira massiva, em favor de um governo que estava sendo deposto.
Porque, de fato, as mobilizações da maior parte da população foram de opinião. Não houve uma indignação massiva contra o mecanismo fraudado que eles fabricaram para derrubar o governo. Não houve uma indignação colocando em xeque essa atitude. Foi realizada uma operação judicial-midiática que incluiu o aparelhamento do poder judiciário pelo grupo político que controla o Estado de São Paulo, o Ministério Público e os principais cargos do poder judiciário em Brasília. Incluiu o [juiz do Supremo Tribunal Federal] Gilmar Mendes, que, por dominar aquela máquina, faz política através do Poder Judiciário. A ponto de o Brasil ser um dos poucos países do mundo onde os juízes são famosos como personalidades políticas. Isso significa a falência do sistema democrático. No Judiciário, o juiz deve falar pelos autos, pelo processo. Aqui não: o promotor - que não é do Poder Judiciário mas constitui uma função essencial da Justiça -, produz e veicula um powerpoint motivacional [contra um adversário político, o ex-presidente Lula] que não contém uma única prova concreta. Aquele promotor não fez isso focando os autos, e os advogados sérios dizem que aquilo foi um acinte. O powerpoint que o [promotor] Dallagnol apresentou, em Curitiba, para demonstrar que o ex-presidente Lula era chefe de uma quadrilha tornou-se imediatamente um meme e até estimulou o surgimento de powerpoints irônicos, semelhantes, nas redes sociais. Aliás, foi incrível ver, mais uma vez, o humor sendo usado como arma política nas redes sociais. O promotor fez aquilo sem apresentar nenhuma prova porque ele não queria falar para o processo: ele queria falar para a rede Globo de televisão. Tanto isso é verdade, que a rede Globo interrompeu sua programação normal para dar voz ao promotor em seu ato teatral.
O que se conseguiu provar contra o suposto “chefe da quadrilha” [ex-presidente Lula]? Ele teve seu sigilo fiscal quebrado, teve a vida devassada, e apenas foi encontrado o que todos vimos: um sítio que não é dele, um apartamento que ele ia comprar mas não comprou, e um barco de lata. Essa é uma articulação típica das camadas dominantes brasileiras. Elas já fizeram isso no golpe do Estado Novo, quando Getúlio Vargas implantou uma ditadura e quase decidiu apoiar o Eixo, o Nazismo [na Segunda Guerra Mundial]. Nós temos uma história ruim com essas elites, e, hoje, elas estão aí, com um fascismo de boutique. Nesse fascismo de boutique, perfumado, intelectuais como o [ex-presidente] Fernando Henrique Cardoso pretendem dar um golpe dentro do golpe. Parte dos autores do golpe estão querendo recolocar Fernando Henrique Cardoso na presidência, que seria eleito indiretamente pelo Congresso Nacional, para que ele realize aquilo que é, na verdade, o projeto deles: ser a vanguarda do totalitarismo de mercado.
Vou explicar melhor essa expressão. Nos anos 1980 e 1990, o mundo, em geral, e o Brasil, em particular, tinham setores econômicos altamente lucrativos, formados e mantidos pelo Estado: os setores de telecomunicações, de energia e de transportes. Esses três setores são altamente lucrativos até hoje, e foram tirados do Estado. O argumento neoliberal era: "temos que tirar esses setores do Estado, pois o Estado tem que ser mínimo e não pode dar prejuízo". Mas esses setores foram tirados do Estado e o Estado não diminuiu de tamanho. Seus percentuais em relação ao PIB continuaram mais ou menos iguais. O que aconteceu? Por que aquela privatização foi necessária? Porque o Capital tem tendência expansiva, precisa reproduzir-se com mais força, e os setores financeiros apostaram muito em energia e telecomunicações. Onde está, agora, a fronteira da privatização que pode ser altamente lucrativa? Está nos setores de saúde e de previdência, e também na educação, se o setor público de educação for desmontado. O raciocínio é: "Afinal de contas: para que ficar financiando universidades federais se podemos comprar vagas em estruturas privadas do grupo Kroton, como quer o sr. [Jorge Paulo] Lemann?". Os neoliberais visam efetivamente esses setores, e nem é preciso mencionar a previdência. Destruindo a previdência pública, obtém-se um setor onde se poderá lucrar enormemente, e o Estado fica de retaguarda, como em qualquer lugar do mundo: quando essas empresas quebram, o Estado vem socorrê-las. Na verdade, o Estado mínimo, como dizem vários pesquisadores, é o Estado máximo de apoio ao Capital.
Essa política é desenvolvida na contramão de quem quer fazer distribuição de renda. Uma pessoa de uma cidade do interior de São Paulo - que é um Estado bem rico -, que tem, por exemplo, um pai que ganha um salário mínimo ou que trabalha na roça, que estuda em escola pública rural, terá poucas chances de ascensão social. A escola é ruim, os salários dos professores são baixos e o governador ainda assim quer fechar escolas. O governador neoliberal de São Paulo não paga salário decente para professor do ensino fundamental e diz que salário não é importante - só é importante para ele, para a família dele, para os juízes e para os capitalistas, mas para o professor, salário não é importante. Veja que ironia. Esse menino, essa menina, que está no interior do Estado mais rico do Brasil, tem um futuro muito pouco alvissareiro pois não terá nenhuma oportunidade. Mesmo que tenha, as oportunidades não são iguais para todos porque há um funil violento. Acontece que políticas distributivas, que também vêm no sentido de dar novas possibilidades subjetivas para essa juventude, precisam também ser construídas com o Estado. O Estado mínimo a favor do mercado máximo é contra isso e precisa, portanto, de fascistas de boutique, que estão operando essa ação contra o despertar criativo da nossa população, contra as práticas colaborativas que podem trabalhar um outro tipo de futuro, contra as buscas de novas formas de convivência. Eles estão aí, com essa verdadeira noopolítica, nos dizeres do Maurizio Lazzarato.
Eles não querem mais só controlar o corpo. Eles não têm apenas uma biopolítica que os Estados vêm fazendo desde o século XIX. Agora, eles têm uma política para o pensamento. E, segundo essa política para o pensamento, a dissensão e o debate contra ela devem ser criminalizados. Não é à toa que os deputados de direita apoiam o projeto conhecido como "Escola Sem Partido", porque eles acreditam que o debate precisa ser demonizado. A diversidade não é boa para o mercado total. O mercado total, nos dizeres de Gilles Deleuze, é uma matriz de pensamento, uma axiomática do Capital que estamos vivendo. Já vivemos essa axiomática há muito tempo, mas agora vemos a sua expansão. E é muito interessante perceber que ela se dá na plataforma de redes sociais também.
É preciso atualizar autores como Guy Débord, que tratava da sociedade do espetáculo, uma sociedade visual. O que era, no fundo, a engrenagem mestra da espetacularização? No meu modo de ver, era a mercantilização exacerbada que Débord já percebia nos anos 1960, imagine agora! A Internet não reduziu a sociedade do espetáculo: ela ampliou a espetacularização. E ela atinge as subjetividades de uma maneira brutal. Assim que conhecemos alguém, hoje, vamos logo ao Facebook ver o perfil dessa pessoa. Se ela não tem perfil no Facebook, nem no Instagram, nem no Twitter, já achamos que ela é agente da CIA, porque ela não existe, ela é um robô! Essa situação representa uma pressão diferente do totalitarismo do Big Brother, pois aqui se trata de um totalitarismo distribuído. Essa é a questão que estamos vivendo hoje e que precisamos enfrentar.
Por outro lado, uma grande onda de percepções novas tem nos movido. Isso é muito bom. É claro que nós sofreremos muito, e as populações em situação de risco, mais pauperizadas, também sofrerão muito. Mas acho que vamos ter que realizar mudanças profundas em nosso país. Não podemos mais abandonar as mudanças de valores, como abandonamos as mudanças ocorridas nas ideias de direitos, de respeito. Tampouco eliminamos a polícia militar. Estive em uma manifestação recentemente na qual as pessoas gritavam: “Não acabou / Vai acabar / Eu quero o fim da Polícia Militar”. As parcelas da população que não têm uma aproximação com essa lógica podem achar que aqueles manifestantes são contra a polícia, pois a polícia, para elas, é a Polícia Militar. Na verdade, eles estão dizendo que são contra a militarização da polícia, e não contra a polícia. Mas essa ideia não é popular, as pessoas estranhavam quando os manifestantes cantavam isso. Por que? Porque não trabalhamos a ideia de que, para cumprir a lei, o policial não precisa violar a lei. Para cumprir a constituição, não precisamos torturar as pessoas.
Não podemos aceitar essa lógica norte-americana do Estado de exceção. Ela não é só norte-americana, mas lá é onde cala mais fundo. Também não podemos aceitar algoritmos de extermínio. Eles estão nos drones [nos EUA], mas aqui fazem parte do imaginário de muitas pessoas que assistem esses programas de violência, à tarde, na televisão. As emissoras deveriam ser processadas a cada absurdo que o apresentador e o âncora dizem. Um juiz pode dizer que os direitos fundamentais não são absolutos? Essa é a opinião dele, mas, então, eu também quero dar a minha: direitos fundamentais são absolutos, sim. Nada pode suprimí-los, mas esse juiz diz o contrário. Ele faz o que quer porque tem uma caneta na mão e um tribunal acima dele que está articulando um golpe no Brasil e lhe dá suporte. Eu acho uma aberração o que está acontecendo, e nós vamos ter que mexer em tudo isso. Vamos ter que mexer na situação do negro no Brasil, e na das mulheres. A grande surpresa, a grande novidade no meio dessa tragédia toda, é que os três grandes focos de resistência que temos visto nas ruas são os movimentos feministas, os movimentos anti-racistas e os movimentos dos jovens que ocuparam escolas em defesa da Educação. Dentre esses três movimentos, quem primeiro se levantou contra a direita tacanha, em São Paulo, foram as feministas. Essa é uma outra lógica, que vai mudar profundamente os valores da nossa sociedade. Essa é uma boa notícia!
Marcelo Tramontano: A criminalização do debate significa, em última instância, criminalizar a produção de conhecimento e o exercício do pensamento livre. Diversos espaços propiciados pela Internet - entre eles as redes sociais, mas não apenas - têm constituído um ágora onde esse exercício ocorre, ainda que, muitas vezes, pautado pela imprensa corporativa e por agentes do Estado, mas também por grupos e indivíduos com vivências e opiniões absolutamente variadas. De que maneira a criminalização do debate nesse ágora tem se servido de estratégias militarizantes?
Sérgio Amadeu da Silveira: Estamos vivendo hoje um processo de militarização geral da Internet. A Internet é vigiada o tempo todo a partir do grande poder computacional de algumas agências, como a NSA [National Security Agency, dos EUA]. Ela nos considera a todos como suspeitos, como simpatizantes dos inimigos da expansão de poder norte-americana. Vários teóricos liberais, como Joseph Nye Jr., e até mesmo teóricos do Departamento de Estado norte-americano, como [John] Arquilla e [David] Ronfeldlt dizem que, principalmente depois do 11 de setembro, é necessário mudar a estratégia de ação dos EUA. E eles mudaram: a CIA perdeu força, a NSA ganhou força, ganhou mais recursos, e a espionagem, que antes era focada em alguns indivíduos, em alguns grupos, é agora massiva na rede. Ela é feita, por exemplo, através do uso do data mining, como [Edward] Snowden nos mostrou em junho de 2013. Ou seja, essa militarização visa manter um esquema de poder global, essa é a questão. Para a manutenção desse esquema, é fundamental que exista um inimigo, isso que tem que ficar claro. As verbas de segurança dos EUA equivalem a um PIB brasileiro. Para que tudo isso? Porque, supostamente, há um inimigo, uma besta, um cão mundial, um inimigo brutal que precisa ser enfrentado e que está em todos os lugares, sobretudo agora com essa rede distribuída.
Joseph Nye Jr. diz que o poder de vigiar a Internet que os Estados nacionais têm é bem menor do que o poder que eles têm para vigiar os mares, os ares e a terra. Ele diz que [no mundo físico] eles têm esse poder, mas, na Internet, não têm. Então, vem um grupo como o Wikileaks e coloca em crise esse poder. Olha que situação! Essas agências de segurança trabalham com a farsa. Julien Assange está impedido de sair da Embaixada do Equador, em Londres, porque é acusado de um crime sexual na Suécia. Se ele pisar em um aeroporto da Suécia, acordos de extradição [entre Suécia e EUA] o levam para os EUA. O tempo todo vemos um jogo cínico, o mesmo cinismo que se vê no Brasil, do golpe. A imprensa internacional tem dito que, no Brasil, políticos chafurdados na lama da corrupção afirmam que estão passando o país a limpo. Isso é um absurdo!
O cinismo é parte da política que nós estamos vivenciando hoje, no Brasil, apesar de essa política do cinismo não ser apenas brasileira. Vários dos seus componentes são encontrados aqui, como a espetacularização, o mercado totalizante e a militarização. Durante todo o governo [do ex-presidente] Lula, as polícias militares navegaram sem nenhuma restrição porque infelizmente não era importante para o PT mexer profundamente na máquina da repressão, que vem desde a ditadura militar. Não era tão importante trabalhar os direitos humanos, cujos valores deveriam ter sido trabalhados. Quem lidava com valores era considerado bobo, era considerado uma figura menor, um ingênuo. Agora vemos o resultado dessas políticas. A lei do crime organizado e a lei anti-terrorismo, descabidas e exageradas, foram projetos do PT, no governo da [presidenta] Dilma. O golpe que está em curso não rompe uma estrutura constitucional e cria atos institucionais porque ele não precisa. Basta o Supremo Tribunal Federal, ao arrepio da nossa Constituição, dizer que considera um caso transitado e julgado após a segunda sentença. Pronto. Eles nem ficam vermelhos ao fazer isso!
Marcelo Tramontano: Fazendo, agora, um balanço de todas as questões que você apontou, das conquistas do Brasil até antes do golpe, e, ainda, de espaços de resistência que devem ser preservados, pelos quais é preciso lutar: quais dessas questões, conquistas e espaços de resistência poderíamos considerar boas notícias para esses tempos difíceis?
Sérgio Amadeu da Silveira: Eu penso que, do ponto de vista da mobilização da sociedade, temos um avanço muito grande. Nos movimentos que defendem a sua orientação sexual, nos movimentos anti-racistas, nos vários movimentos feministas. Temos também um novo movimento de juventude. E temos uma profusão de mobilizações de coletivos que utilizam tecnologias digitais, que poderíamos designar como hackers, makers, e que tendem a se expandir nos próximos períodos. Quanto mais corpulento for o Estado, quanto mais ele fizer o mercado invadir a privacidade, mais resistência haverá. Eu acredito muito nas mobilizações que estão acontecendo em todos os cantos do Brasil. Há um movimento novo na esquerda, surgindo também nas comunicações. Os jornalistas livres, o Mídia Ninja, coletivos como A Ponte e outros, começam a disputar narrativas na sociedade. Estou falando de vários movimentos que representam um arejamento. Vejo a possibilidade de ocorrer uma ampla mobilização em defesa da liberdade de comunicação, do direito a se comunicar, que nunca conseguimos fazer antes.
Penso também que vai ocorrer uma série de remixagens e fusões do pensamento crítico, o qual terá que se alterar diante dessa nova situação. Vamos descobrir novas possibilidades, novas lógicas, porque os próprios conceitos com que trabalhamos precisam ser atualizados diante desse mundo no qual estamos vivendo. Face a projetos de cidades inteligentes, nós precisamos de projetos de cidades que respeitem os direitos das pessoas. Ainda não temos a qualificação desses nomes, não temos novos conceitos. Mas acredito que eles precisam ser construídos. Há uma evolução em curso em vários lugares que, de certa maneira, vai se concluir. A resistência vai aumentar. O pensamento crítico vai se revigorar. E, por outro lado, algumas coisas que já nos pareciam velhas, não são velhas de jeito nenhum. A concentração de renda no mundo nunca foi tão grande. Isso coloca a questão do pensamento pela equidade, a justiça pela equidade, como um elemento crucial juntamente com a liberdade. A liberdade próxima da equidade é a grande novidade que nós vamos ter que realizar nos próximos tempos. Temos que pensar muito e agir muito.
Marcelo Tramontano: Para terminar, uma pergunta sobre esses próximos tempos: o futuro lhe parece promissor?
Sérgio Amadeu da Silveira: O futuro me parece promissor, mas é um futuro de muitas batalhas, de muitas derrotas e de muitas tristezas. No entanto, estamos construindo algumas fortalezas do pensamento que, por serem virtuais, não podem ser destruídas por bombas. Eu acho que essa é uma vitória muito grande dessas mobilizações críticas, de um pensamento efetivamente avançado. Entre o liberalismo e as perspectivas totalitárias, nós vamos encontrar formas que sejam atrativas para aqueles que, de fato, não conseguem mais conviver com um mundo tão desigual e sem liberdade.
Então eu acredito que o futuro será feito de grandes vitórias, apesar das derrotas que estamos sofrendo agora. Muitos de nós já descobriram que, daqui em diante, vamos trabalhar fortemente com valores. Isso não se faz só com discurso político, mas com demonstração, com ação, com hipertrofia de canais que os poderosos acham que funcionam muito bem. É nesse sentido que eu penso que haverá um mix do hacking com o saber das comunidades tradicionais, da experiência dos coletivos de periferia com as universidades. Nós vamos ter que experimentar essas mixagens, essas práticas recombinantes e, assim, teremos um outro tipo de futuro.
Não dá mais para ficar parados. Não dá mais para simplesmente se queixar de que "os poderosos têm muita força”. A gente sempre soube disso. Nós nos iludimos achando que isso poderia não ser verdade. Mas é. Então, só nos resta construir uma outra perspectiva, uma outra tecnologia, um outro projeto. E então, quando tivermos um enfrentamento desse porte, alcançaremos algo melhor do que temos hoje. Muito melhor.