Como citar esse texto: TEIXEIRA, C. M.; RODRIGUES, L. A.; ARAÚJO, D. C.; ALMEIDA, F. A. F. Outros Territórios: na escala do prédio, do bairro, da cidade. V!RUS, São Carlos, n. 13, 2016. Disponível em: <http://www.nomads.usp.br/virus/virus13/?sec=7&item=1&lang=pt>. Acesso em: 00 m. 0000.
Carlos Moreira Teixeira é Mestre em urbanismo. Publicou os livros Em Obras: História do Vazio em Belo Horizonte (CosacNaify, 1999), O Condomínio Absoluto (C/Arte, 2009), e é um dos organizadores de Espaços Colaterais (Cidades Criativas, 2008).
Leonardo Augusto Rodrigues é arquiteto e urbanista.
Daila Coutinho de Araújo é arquiteta e urbanista.
Frederico Assis Fonseca de Almeida é arquiteto e urbanista.
Palavras-chave: Cidade; Urbanismo; Espaços públicos.
Introdução
Nos últimos anos, a consideração pelo existente tem sido vista como uma posição engajada, distante dos histerismos da “arquitetura icônica” e próxima da diversidade e da informalidade do tecido urbano. Partindo das incongruências econômicas e geográficas do mundo global, o “urbanismo informal” proclama um movimento de baixo para cima e alinha-se a um projeto de resistência contemporâneo: contrabalançar as disparidades sociais do neoliberalismo assumindo um discurso politicamente correto e insinuando uma certa descrença pelo objeto arquitetônico.
É uma reação necessária que vê a possibilidade de transformação, não na arquitetura, mas na participação horizontal, no debate público, nas redes rizomáticas. Essencialmente urbana e situacionista, ela associa arquitetura ao status quo, a uma adesão complacente ao sistema de poder, à repetição de práticas viciadas e anacrônicas.
É evidente que não seria o caso de contestar essa reação: ao contrário, ela deve ser apoiada e vista como um projeto efetivamente transformador e empoderador. Mas haveria alguma alternativa que igualmente enfrente os desequilíbrios da cidade? Haveria alguma outra possibilidade no existente?
O fato é que muitos arquitetos já se esforçaram para encontrar na cidade a substância para propor uma arquitetura da cidade, ou uma arquitetura que, a um só tempo, define, critica e reage à cidade existente. As três propostas que apresentamos a seguir encaixam-se nesta segunda categoria.
Seguindo um crescendo pequeno-médio-grande em termos de escala de abrangência, a primeira, Amnésias Topográficas, se restringe a um objeto. A segunda, Outros Territórios, busca o envolvimento de um bairro. Apresentadas por meio de textos descritivos, ambas trabalham com o possível e foram propostas pelo escritório Vazio S/A em parceria com outros agentes culturais.
A terceira proposta difere não só pela sua escala urbana, mas também porque é um exercício especulativo. Deixando de lado as contingências da prática profissional das duas primeiras, ela foi imaginada a partir de uma provocação feita pela linha curatorial de Misunderstandings - exposição organizada por um grupo de arquitetos italianos ligados à arquitetura radical dos anos 1970 - e retoma uma tradição que foi perdida nas últimas décadas: a da arquitetura da cidade como instrumento a um só tempo crítico, poético e urbano.
Na escala de um prédio
A paisagem das grandes cidades é composta por muitos elementos residuais. Regiões vacantes, vazios subutilizados e terrenos baldios configuram áreas abertas e sujeitas às pressões econômicas e sociais que produzem a cidade. Áreas vizinhas a ferrovias, regiões desindustrializadas, centros históricos em declínio, portos desativados – todos se transformaram num imenso manancial propício para intervenções, uma tendência mundial que tem gerado várias formas de revitalizações e transformações urbanas. Amnésias Topográficas (2001-2005), no entanto, é um projeto que procurou estender as estratégias de projeto nesses locais, buscando mostrar tanto os limites das intervenções convencionais quanto as possibilidades de intervenções efêmeras.
Lançado para o mercado imobiliário no início dos anos 1990, os morros do bairro Buritis, em Belo Horizonte (antes marcados por uma palmeira típica do cerrado, o buriti), foram todos rapidamente ocupados por prédios caracterizados pela uniformidade volumétrica, pela falta de uma melhor relação terreno-projeto, pela mesmice e sobretudo pela falta de imaginação de seus arquitetos.
Os pilotis desses prédios são como plataformas que dividem dois espaços absolutamente desconexos: abaixo, um labirinto de pilares de concreto; acima, apartamentos classe média. E no meio, os pilotis que funcionam como garagem e/ou área de lazer. São prédios com uma única estrutura em um único lote em um mesmo imóvel, porém gerando duas possibilidades de ocupação independentes, radicalmente separadas e espelhadas pelos pilotis.
Uma dessas ocupações está determinada (os apartamentos); a outra encontra-se espantosamente em aberto. É evidente que o potencial arquitetônico desses prédios está precisamente nessa organização atípica, na lógica de assentamento das Amnésias Topográficas, nessa surpresa gerada por um acidente arquitetônico. O labirinto formado pela sequência das palafitas de concreto, a natureza explicitamente residual desses labirintos e a uniformidade dos prédios suportados pelas palafitas conformam, todos eles, um potencial que é inversamente proporcional à qualidade arquitetônica desses objetos. Terrenos acidentados são vencidos através de uma malha sincopada de pilares e vigas, cintas e contraventamentos que, juntos, materializam fantasias arquitetônicas. São espaços piranesianos não idealizados por arquitetos; produtos de calculistas que jamais imaginaram o espaço que projetaram; surpresas espaciais que nunca acontecem no mundo previsível da arquitetura.
Duas coisas marcam a esquizofrênica identidade visual desse bairro: as palafitas e a mata atlântica sobre as encostas. Grandes áreas verdes permeiam os prédios palafitados. A topografia do bairro é tão montanhosa que partes de muitos quarteirões não puderam ser loteadas. É por isso que várias reservas naturais são vizinhas às sequências de palafitas; reservas estas que não são parte do plano urbano do bairro e tampouco foram uma exigência legal para equilibrar a quantidade de área verde por habitante – elas são simplesmente uma “consequência topográfica”. São manchas verdes isoladas e totalmente inacessíveis por causa da declividade e da fileira de palafitas que as protege e as isola de todo contato com as ruas e com os próprios prédios.
Na arquitetura moderna, os pilotis dos edifícios foram concebidos como um elemento que permitiria soltar o edifício do terreno, liberando no térreo uma área aberta, coberta, geralmente contígua a áreas verdes e úteis como playground, local de eventos etc. “Que a casa seja suspensa por estacas, que se erga no ar, que o jardim penetre debaixo da casa”. Dessa forma os pilotis permitiriam uma continuidade do parque ao redor dos prédios ou das casas. Brasília e suas superquadras são uma ótima tradução desse elemento, sendo que seus blocos residenciais permitem o livre caminhar pelas superquadras por estarem sempre apoiados sobre pilotis. Por mais geométricos e duros que sejam, esses prédios procuram ser permeáveis e penetráveis pelo público, integrados que estão na vegetação rala do cerrado.
No caso de Amnésias Topográficas, é como se os pilotis tivessem sofrido uma mutação, resultado de um tumor (maligno?): no lugar destes, as palafitas fazem a conexão arquitetura-natureza. Com algumas semelhanças: ambos servem para separar os prédios da natureza e do contato direto com o terreno. E com diferenças fundamentais, também: ao contrário dos pilotis, que em princípio servem para integrar os prédios e moradores nas áreas verdes, as palafitas mantêm a natureza como algo inatingível. No final, os dois principais elementos do bairro (matas e palafitas), ambos de uma beleza espetacular (ainda que um espetáculo despercebido), ironicamente não são acessíveis nem para moradores e nem para a comunidade em geral.
Invento para Leonardo, peça do grupo de teatro Armatrux, foi a primeira transformação desse resíduo em palco de um espetáculo. Partimos [Vazio S/A + Louise Ganz] então de algo existente - uma estrutura arquitetônica ordinária e agressiva - que se transformou em matéria plástica espacial. Prédios vizinhos aqui se tornam uma única e contígua estrutura de concreto aparente; um continuum de vigas e pilares prontos para receber qualquer função. No palco do espetáculo, passarelas de madeira, escadas, rampas e plataformas possibilitaram o uso extensivo das palafitas em diversos níveis pelos atores. Simultaneamente à apresentação da peça, os prédios vizinhos apresentavam cenas cotidianas que se tornaram públicas: famílias jantando, tomando banho, conversando, dormindo e, eventualmente, assistindo à peça de suas janelas.
O espetáculo possibilitou também uma inversão no quadro de privatização dos espaços da cidade. Em um país de cidades cada vez menos públicas e mais violentas, o projeto funcionou como um urbanismo efêmero que mostra os desequilíbrios urbanos de uma forma sem precedentes. Nesse sentido, Armatrux foi um fator crucial nesta investigação: ao contratar-nos para a escolha do local para uma nova peça, o grupo com tradição de teatro de rua estendeu a pesquisa do teatro para a pesquisa de novos conceitos de rua.
Na escala de um bairro
Projeto que estamos desenvolvendo nesse exato momento em parceria com o curador Eduardo de Jesus, Outros Territórios (2016-2017) é uma continuação de Amnésias Topográficas, que almeja uma reverberação só realizável na escala de um bairro. As propostas serão várias: dezenas de intervenções efêmeras e simultâneas que vão provocar mudanças instantâneas na paisagem da região.
Assim como seu precedente, é um projeto que unirá o ambiental a uma função restauradora e investigadora das artes e que trará benefícios para um passivo urbano infelizmente ignorado, retomando a discussão dos problemas da Lei de Uso e Ocupação do Solo de BH; promovendo uma forma instigante de convergir arquitetura, artes, paisagismo e ecologia; e relativizando os problemas advindos de encostas abandonadas.
Outros Territórios é ainda uma atuação restrita a uma escala local, mas que se enquadra em discussões mais abrangentes: ora, a regeneração de vazios urbanos e arquitetônicos é um problema do Buritis, mas também é uma questão do urbanismo e das cidades contemporâneas. A intervenção efêmera aqui é entendida não como algo passageiro, mas como legado imaterial capaz de catalisar mudanças permanentes. E a cidade é vista como um campo de discussão cada vez mais aberto e onde a participação deve funcionar como forma de alavancar e legitimar mudanças: por meio de um certame de âmbito nacional, arquitetos, artistas e paisagistas e poderão participar, assim como todos os não-profissionais, as associações do bairro, as instituições de classe, a Prefeitura de BH, escolas de arquitetura etc.
Diferentemente do projeto anterior, que foi pouco divulgado e visitado por um público muito reduzido, Outros Territórios acontecerá num contexto de redes sociais hiper articuladas e onipresentes, o que certamente corrobora nossa intenção de, neste novo projeto, estender seu alcance para além do público das artes cênicas.
Na escala da cidade Poderiam essas palafitas ser consideradas como um insólito fenômeno de âmbito internacional? Como uma caricatura delas mesmas utilizada num sistema infiltrante que eventualmente se torna universal? Pode esse espaço tido como residual e maléfico ser exportado para outras arquiteturas finalizadas e invadir construções estáveis? O efeito desta operação pode ser surpreendentemente positivo como numa operação matemática: menos x menos = mais (assim como também corre o risco de operar apenas como um revivalismo nostálgico de algumas críticas notórias do modernismo).
Há uma energia expectante só encontrada na incompletude, no vazio e no comum que se encontra logo ao nosso lado: os melhores futuros do existente estão em campos latentes que precisam ser revelados e ampliados em escalas cada vez maiores.
Assumindo as ambições da multiplicação universal, nesta nova escala o grid das palafitas é aplicado em edifícios diversos e nada mais tem a ver com seu bairro de origem. Ele não só complementa, mas também potencializa arquiteturas encontradas que tomamos como ponto de partida para uma adição: toda a arquitetura da cidade agora são "esperas" imaginárias que serão estendidas, cumprindo assim uma intenção inconsciente de voltar ao estado primitivo, em obras, em crescimento. O grid é inserido sem distinções: em edifícios prosaicos, emblemáticos, simbólicos, ordinários; na periferia, no centro; aqui, ali. Ele se espalha aleatoriamente, levando a liberdade de usos a edifícios estanques, encorajando novas atividades em espaços públicos, estendendo sua beleza absoluta como se fosse um tumor capaz de revigorar arquiteturas moribundas. Ele tem algo que denota edifícios em construção, que transforma a arquitetura acabada em inacabada, que dá a edifícios prontos a possibilidade de crescimento e transformação. (É por isso que todo edifício é bonito quando em obras: neste estágio ainda há esperança de que alguma arquitetura apareça, ou que talvez o resultado daquela construção não vá ser tão previsível e medíocre como o de seus vizinhos acabados.) Uma cidade contaminada por este sistema é uma cidade para sempre em construção, para sempre incompleta, para sempre "processo" e nunca "produto”. Uma cidade de estruturas metabolistas espontâneas e não-projetadas.
Para cada edifício, duas arquiteturas: uma determinada, a outra em aberto. Como numa relação simbiótica, esta arquitetura adicional se encaixa como uma luva nos edifícios originais a ponto de agora ser difícil olhar novamente para o original sem a sensação de que lhe falta algo. A cidade produto dessa operação é compacta e rala, acabada e inacabada, genérica e única. Permeando edifícios em diferentes posições (no topo, por baixo, no meio), o que vemos é uma sequência arrítmica de reservatórios espaciais indeterminados. E esta corrupção do existente está carregada de mudança, de liberdade, de mutabilidade, abrindo possibilidades inauditas para um novo domínio público muito além da polarização público-privado.